sexta-feira, 7 de maio de 2010

O QUE PENSAM OS LEGISLADORES QUANDO PROPÕEM QUE A CRIANÇA DE 5 ANOS SEJA OBRIGATORIAMENTE MATRICULADA NO ENSINO FUNDAMENTAL?

Texto Elaborado Pelo Grupo de Estudos “Ciências Sociais, Artes e Infâncias”, da Universidade de São Paulo e Prefeitura de São Paulo
NOSSA INDIGNAÇÃO FRENTE A ESSA PROPOSTA

Ao olhar para a escola de Ensino Fundamental do Município de São Paulo em 2010 nos deparamos com crianças menores que nos anos passados. Essas estão hoje matriculadas no 1ºano do Ensino Fundamental de 9 anos, que inicia com educandos de 6 anos de idade. Os professores e muitos pais, bem como os educadores das escolas, explicitam um incômodo em relação à situação vivida e pela observação dessas crianças que procuram brechas no espaço institucional para viver este momento de sua vida e expressar-se nas linguagens que fazem parte de sua constituição como humano. Presenciamos crianças que são muito pequenas para o mobiliário e que correm, brincam e tentam se divertir em espaços que não foram pensados para a sua idade. Os educadores expressam seu protesto em relação às exigências institucionais para a apropriação do sistema de escrita de forma sistemática, no nosso entender, uma antecipação desnecessária da alfabetização no seu sentido estrito e que permanece como meta dos governos, mesmo com a entrada no fundamental de crianças mais novas.
Se a criança que hoje freqüenta o 1º ano de Ensino Fundamental com 6 anos de idade tem sido privada de seus direitos como sujeito social, cultural e histórico que apropria-se e manifesta-se, recriando e produzindo cultura infantil em instituições educativas, que são espaços privilegiados de encontros, relações e pertencimentos, precisamos exercer nossos direitos como educadores de opinar, discordar e contestar a possibilidade, como se apresenta no Projeto de Lei do Senado nº414, de 2008, da obrigatoriedade da criança de 5 anos frequentar as escolas de Ensino Fundamental, as quais em sua maioria não estão preparadas para atender essas crianças, respeitá-las em seus direitos e valorizar a infância. Estas iniciativas ferem primeiramente o direito de participação, manifestação e de serem ouvidas as comunidades educativas, que incluem educadores, famílias, professores, crianças e a população em geral nas políticas públicas para a criança pequena deste país.
Mais uma vez, a lógica da contenção dos corpos, da redução das diferentes dimensões humanas e da priorização da técnica e da tendência instrumental em oposição à inscrição dos atos infantis na memória dos grupos a partir das suas experiências como sujeito histórico e cultural prevalece nos documentos legais e no discurso de pessoas que pretendem instituir propostas para a infância sem respeitar os princípios democráticos que pregam.
Parece que se pretende com esta legislação retomar as concepções do ensino propedêutico e da criança sem estatuto e autonomia existencial, retratada como um pequeno adulto. Possivelmente retomar o caráter compensatório (higiene, afeto e moralização), com a intenção de prepará-la para ser adulto e vencer profissionalmente, carregando nas ações cotidianas as exigências e deveres da cultura escolar: seus saberes homogeneizadores, a ética do esforço e a disciplina mental e corporal. Estarão essas crianças submetidas às propostas afetas à modelização do comportamento pela educação com finalidade de subordinação, conjugada à possibilidade de competição no mercado pela apropriação da leitura e da escrita.
Cremos que não é o desejo dos educadores das instituições de Ensino Fundamental e Educação Infantil que retornemos ao imaginário disciplinador, iniciando cada vez mais cedo o controle, a homogeneização e a subordinação das crianças ao mundo dos adultos, sem considerá-las como protagonistas em sua existência social, cultural e histórica, participantes da sociedade e da construção cultural de seu tempo e espaço, modificando e sendo modificadas por elas.
Assim, consideramos a criança como
• “Sujeito de direitos, ontogenicamente presente e socialmente competente, com direito à voz e a participação nas escolhas e políticas educativas” ( GOULART, 2007)
• Cidadã que transforma a ordem e a vida social; Feita de e na linguagem, produtora na e de história (identidades). Faz parte de um grupo e pode expressar este pertencimento;
• Capaz de estabelecer múltiplas relações, de produzir cultura do grupo, cultura infantil, por meio da expressão e manifestação nas múltiplas linguagens e de diferentes modos de agir. Constrói seus saberes, reproduzindo e criando novas brincadeiras, com novos significados;
• Ser competente, capaz de sofisticadas formas de comunicação, mesmo quando bebê, estabelecendo trocas sociais com crianças e adultos, em uma rede complexa de vínculos afetivos;
• Capazes de interagir entre si desde muito pequenas, elas são capazes de criar uma série de estratégias que aproximam umas das outras, por meio de imitações, oposições e sincronias de ritmos e harmonia com grupos de crianças.
Fazem parte da cultura da criança: a interatividade com crianças e adultos e o fazer-junto com seus pares; a ludicidade que constitui um traço fundamental das culturas infantis e são próprias do humano, sendo uma das atividades sociais mais significativas.
Esses são princípios que deverão ser respeitados e que não orientam a organização e a estrutura do Ensino Fundamental. Portanto, uma proposta que obriga a inserção da criança bem mais cedo nesta etapa da educação básica desconsidera a educação como prática social em sua função histórica e emancipadora, considerando a cultura produzida pela humanidade e veiculada pela escola como a salvação e a possibilidade de dominação de seres inferiores que não conseguem produzi-la, considerando-a em uma condição social subalterna. A cultura valorizada não pode ser apenas aquela determinada pelo econômico, mas também aquela da resistência dos grupos de diferentes espaços das cidades que preservam e recriam o mundo, na perspectiva da superação da visão fragmentada da realidade.
Assim, em que os espaços e tempos das escolas de Ensino Fundamental, hoje estruturadas pela lógica da homogeneização das relações e das ações, possibilitam a garantia do direito de ser criança e de experienciar todas as dimensões do humano bem como viver a infância não como uma etapa para o desenvolvimento, mas como momento de vida em que se apresentam maneiras de ser, agir e se expressar que são constituídas no universo sócio –cultural e histórico das relações nos diferentes espaços de convivência infantis?
O que queremos é um espaço para a infância que respeite o direito a experienciar todas as situações neste momento de vida em sua plenitude, o direito de brincar, produzindo-se uma Pedagogia da Infância em bases culturais e estéticas, produto da escuta das vozes infantis.
As crianças necessitam recriar cultura e produzir cultura infantil, brincando criando, e não ter reduzidas suas ações à partir de princípios educacionais que privilegiam a ordem,a planificação, a quantificação e a linguagem verbal escrita.
Consideramos que o tempo e o espaço concorrem para a produção da vida social. Existe uma socialidade espacial, pois o espaço molda coercitivamente os hábitos e costumes do dia a dia que, por sua vez, permitem a estruturação comunitária, a pregnância de uma memória espacial. A organização do espaço físico e tempo é um dos elementos fundamentais na constituição dos espaços para a infância. Espaços esses construídos pelas crianças em planos de ação concretos.
Acreditamos que nestas legislações equivocadas prevalece a estrutura do burocrata/especialista que pensa nos fins lógicos de suas decisões e sua responsabilidade com essa estrutura elimina de suas ações todo o envolvimento com o direito das crianças pequenas, com o compromisso social com a população que representa e com a democracia que defendeu.
As transformações propostas pela legislação em tela não respeitam os desejos, as necessidades e a lógicas infantis, mas a lógica das políticas de maximização dos espaços para atender a demanda e da necessidade de preparar a criança para o mundo do adulto, explicitando a concepção de que os espaços educativos para a infância não devem ser organizados para a criança, mas para um mundo “... , racionalizado, categorizado” em uma ordem oposta à vida e aos sentimentos. Ainda pensam os legisladores que a infância é um período da vida inconstante, intempestivo e irracional, devendo ser superado pela razão, através da disciplina e eliminação de atitudes inadequadas para os critérios estabelecidos pelos adultos.
Acreditamos que os espaços de Educação Infantil que respeitam os direitos da criança pequena, desafiando o caráter homogeneizador e disciplinador das instituições deveriam ser também um centro irradiador das culturas da comunidade, não para consumi-las, mas para recriá-la, sendo considerada um espaço de organização deste grupo de pertencimento, constituindo-se em um centro de debates de idéias, soluções e reflexões, em espaços repletos de elementos da natureza em que as crianças brincam, convivem e se manifestam nas diferentes linguagens, como protagonistas da ação educativa, tecendo sua história e percebendo-se na sociedade.
Portanto, existe uma contradição entre o que defendemos para a criança pequena e o Projeto de Lei em questão, pois as concepções de infância dominantes na sociedade são explicitadas pelo legislador que, em momentos de decisões políticas para programas educativos, deveria fundamentar-se em proposições geradas autonomamente no campo específico da educação, neste caso, da educação infantil, pois são os sujeitos de direitos – educadores que constroem suas identidades no cotidiano das espaços para a infância.

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