sábado, 22 de dezembro de 2012

Regime de colaboração ou de cobrança?

Regime de colaboração ou de cobrança? Publicado em 22/12/2012 por Luiz Carlos de Freitas O tão discutido regime de colaboração entre entes federados poderá evoluir para um verdadeiro regime de cooperação ou, então, para um regime de cobranças baseado em responsabilização autoritária, centrada em políticas de avaliação de resultados de aprendizagem. Se eu tivesse dito isso há uma semana atrás, alguém poderia dizer que eu estava vendo fantasmas. Tenho me arriscado a criticar a lei de responsabilidade educacional que tramita no Congresso sob número 7420. Muitos não acreditam que ela ofereça risco. Pois bem. Hoje veio a cereja do bolo em um artigo de Antonio Matias, vice presidente da Fundação Itau Social e membro do Conselho de Governança do Movimento Todos pela Educação, na Folha de SP (15-11-2011), na página 3, chamado “Um elo necessário pela educação”. Deve ser lido. No artigo ele defende que se defina o modelo de colaboração e sugere que seja o usado no Ceará a partir de 2001, ou seja, que estabelece “um sistema de avaliação e acompanhamento pedagógico com foco em metas”. O governo do Ceará, em 2007, segundo Matias, propôs um grande acordo com os municípios e “parte do repasse do ICMS aos municípios passou a ser feito com base nos resultados de aprendizagem”. Este é o modelo de regime de colaboração entre entes federados que o Todos pela Educação e os reformadores empresariais querem. Uma responsabilização punitiva e não colaborativa. O tal regime de colaboração passa a ser regime de responsabilização punitiva. Se não atende à meta do IDEB ou de outro indicador, não há dinheiro extra. Note o detalhe: ele já menciona a reforma administrativa do MEC feita em maio deste ano, quando se criou a Secretaria de Articulações destinada a gerenciar a colaboração entre entes federados, e define o eixo da responsabilização: no plano federal o MEC, via Secretaria de Articulações com os Sistemas; no plano intermediário Consed e Undime, e no plano local as Secretarias de Educação às quais ele invoca a “autonomia dos Estados e municípios brasileiros” que possibilita aos “gestores propor inovações de acordo com as realidades locais”. A proclamada autonomia dos Estados e Municípios, será a “autonomia” para cumprir as metas do IDEB, atreladas que estão sendo pelo PNE às metas do PISA. Como o sistema de avaliação define o currículo e influencia nas metodologias usadas, os Estados e Municípios estão, de fato, às portas de perder sua autonomia. Isso não é nada mais do que foi feito com a lei de responsabilidade educacional americana No Child Left Behind em 2001 nos Estados Unidos. Não melhorou a educação americana. Este é um caminho errado para o nosso país. Se for seguido estaremos optando por uma responsabilização autoritária, punitiva que destruirá o sistema público de educação, podendo mais à frente tais resultados serem utilizados para privatizar as escolas públicas – tal como ocorre nos Estados Unidos. Não nos esqueçamos que o instrumento legal para isso já está sendo criado no Congresso – a Lei de Responsabilidade Educacional. O quadro está claro: um PNE não restritivo e que permitirá aos governos locais formularem sua própria política de responsabilização; uma lei de responsabilidade educacional em tramitação associando recursos a metas acadêmicas; e, finalmente, um modelo de “colaboração” entre entes federados baseados no condicionamento de verbas e assistência técnica a metas baseadas em processos de avaliação e acompanhamento. Só não vê quem não quer ver… Sobre Luiz Carlos de Freitas Professor da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil
Ideias que não funcionam: mais dados americanos por Luiz Carlos de Freitas Novos dados mostram que as reformas empresariais continuam a fracassar nos Estados Unidos. Enquanto Finlândia que não usa estas ideias é uma das líderes no PISA e não precisa aplicar testes em suas crianças a não ser no final do ensino médio, os Estados Unidos gastam bilhões em testes sob a égide das reformas empresariais e amargam uma posição na média no PISA há dez anos e, em testes nacionais, mantêm-se atolado no fracasso. Nova York, a meca dos reformadores empresariais brasileiros, como se verá abaixo, é o único estado americano a ter baixa no desempenho de matemática, embora a média geral do país tenha aumentado um mísero ponto em uma escala de 500 pontos. Foram publicados hoje os novos resultados da Avaliação Nacional para o Progresso nos Estados Unidos, aplicação 2011. Aqui vai a primeira análise dos resultados feita por Valerie Strauss. Para ver o relatório de Matemática completo clique abaixo: http://nces.ed.gov/pubsearch/pubsinfo.asp?pubid=2012458 Para ver o relatório de Leitura completo clique abaixo: http://nces.ed.gov/pubsearch/pubsinfo.asp?pubid=2012457 Veja resumo abaixo: O que os novos resultados do NAEP realmente nos dizem Por Valerie Strauss – Publicado às 01:43 ET, 2011/11/01 (… ) - Em matemática, alunos da quarta série e oitava marcaram em média um ponto percentual maior este ano do que em 2009. Ambas as séries marcaram mais de 20 pontos a mais este ano do que em 1990 (quando o teste foi feito pela primeira vez). - Na leitura, da quarta série a pontuação não se alterou nos últimos dois anos, mas foram obtidos quatro pontos a mais do que em 1992, quando o teste de leitura foi feito. A oitava série obteve, em média, um ponto mais alto este ano do que há dois anos atrás, e 5 pontos a mais que em 1992. Continue lendo em (inglês): http://www.washingtonpost.com/blogs/answer-sheet Luiz Carlos de Freitas Professor da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil

Quando os reformadores se calam

Quando os reformadores se calam Publicado em 22/12/2012 por Luiz Carlos de Freitas Postado originalmente na Uol em 23/10/2011 O QUE PODEMOS APRENDER COM A FINLÂNDIA? By Diane Ravitch, no Education Week – 11 de outubro de 2011 (…) O que torna o sistema escolar finlandês tão incrível é que os alunos finlandeses nunca fazem um teste padronizado até chegar ao seu último ano de colégio, quando então têm um exame de ingresso para a admissão na faculdade. Seus próprios professores projetam seus testes, por isso os professores sabem como seus alunos estão se desempenhando e o que eles precisam. Há um currículo nacional – diretrizes amplas para garantir que todos os alunos tenham uma educação integral – mas não é prescritivo. Os professores têm uma extensa responsabilidade no planejamento do currículo e da pedagogia em sua escola. Eles têm um grande grau de autonomia, porque eles são profissionais. A admissão aos programas de formação de professores no final do ensino médio é altamente competitiva, e somente um em 10 ou até menos qualifica-se para programas de formação de professores. Todos os professores finlandeses passam cinco anos em um rigoroso programa de estudo, pesquisa e prática, e todos eles terminam com um diploma de mestrado. Os professores estão preparados para todas as eventualidades, incluindo alunos com deficiência, estudantes com dificuldades de linguagem, e alunos com outros tipos de problemas de aprendizagem. As escolas que visitei me lembraram das nossas melhores escolas privadas progressivas. Elas são ricas em artes, em jogos, e em atividades. Vi belos campi, incluindo alguns com arquitetura deslumbrante, cheia de luz. Eu vi turmas pequenas, embora o tamanho da classe oficial para o ensino fundamental seja de 24, eu nunca vi uma classe com mais de 19 crianças (e esta tinha dois professores assistentes para ajudar as crianças com necessidades especiais). Professores e diretores repetidamente me disseram que o segredo do sucesso finlandês é a confiança. Os pais confiam nos professores porque eles são profissionais. Professores confiam uns nos outros e colaboram para resolver problemas comuns, porque eles são profissionais. Professores e diretores confiam uns nos outros, porque todos os diretores foram professores e têm uma experiência profunda. Quando perguntei sobre a deserção de professores, foi-me dito que os professores raramente deixam o ensino, é um grande trabalho, e são altamente respeitados. continue lendo em: http://blogs.edweek.org/edweek/Bridging-Differences/2011/10/what_can_we_learn_from_finland.html Sobre Luiz Carlos de Freitas Professor da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil

Moção de repúdio às propostas de avaliação das crianças na educação infantil veiculada pela SAE – Secretaria de Assuntos Estratégicos

→ Educação Infantil: nota da ANPED Publicado em 22/12/2012por Luiz Carlos de Freitas Postado originalmente em 21/10/2011 Moção de repúdio às propostas de avaliação das crianças na educação infantil veiculada pela SAE – Secretaria de Assuntos Estratégicos Departamento de Educação, Informação e Comunicação da FFCLRP-USP 20 de outubro de 2011 Considerando: - a legislação nacional no que se refere à educação infantil, ainda em vigor no país: - Inciso IV do artigo 208 da Constituição Federal (1988): “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: (…) educação infantil em creche e pré-escola, às crianças até cinco anos de idade” - Artigo 4º, inciso IV da LDB (1996), que reafirmou a educação infantil como etapa educacional e direito de todas as crianças nessa faixa etária: “O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: atendimento gratuito em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade” - Artigo 29 da mesma LDB (1996), que define a natureza desta etapa da educação básica: tigo 29 da LDB, “a educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até cinco anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade” (BRASIL, 1996, Art. 29) - Artigo 31. “Na educação infantil a avaliação far-se-á mediante acompanhamento e registro do seu desenvolvimento, sem o objetivo de promoção, mesmo para o acesso ao ensino fundamental.” - Artigos 8º e 9º das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009), cujo caráter é mandatório, que determinam: “A proposta pedagógica das instituições de Educação Infantil deve ter como objetivo garantir à criança acesso a processos de apropriação, renovação e articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens, assim como o direito à proteção, à saúde, à liberdade, à confiança, ao respeito, à dignidade, à brincadeira, à convivência e à interação com outras crianças.” “As práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da Educação Infantil devem ter como eixos norteadores as interações e a brincadeira (…)” - o acúmulo de pesquisas (nacionais e internacionais) referentes à qualidade no atendimento às crianças pequenas demonstrando como o investimento em programas de melhor qualidade, inclusive na relação custo-aluno, resulta em benefícios mais duráveis do que investimentos em programas de baixo custo e, sobretudo de baixa qualidade; - a prática histórica de adotar política de baixo custo e baixa qualidade para as crianças mais pobres; - os documentos produzidos: Política Nacional de educação infantil (BRASIL, 2005); Parâmetros Básicos de Infra-Estrutura para Instituições de Educação Infantil. (BRASIL,2006a); Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil. (BRASIL, 2006b.); Indicadores da qualidade na educação infantil. (BRASIL, 2009); - uma concepção de educação infantil cuja função social é possibilitar que as crianças pequenas se apropriem da cultura humana mais elevada; -o que caracteriza a creche e a pré-escola é o seu trabalho intencional com o objetivo de garantir a todas as crianças que a frequentam a possibilidade de ter acesso aos bens culturais desenvolvidos pela humanidade e, assim, atualizarem-se historicamente, ou seja, desenvolverem-se como seres humanos; - a brincadeira, o jogo, a música, as diferentes linguagens expressivas, etc., constituem o modo pelo qual os professores “ensinariam” e, por parte das crianças, o meio pelo qual elas se apropriam da experiência social da humanidade; - a necessidade de investimentos na boa formação para aqueles que irão se responsabilizar pela educação das crianças pequenas, formação esta que entendemos só poder ocorrer com políticas públicas destinadas aos trabalhadores da educação, especialmente aos professores; - o direito da família de participar no processo educacional de seus filhos; - a necessidade de distinguir os objetivos e a forma de atuação da família com a responsabilidade que cabe à creche e à pré-escola; Este colegiado repudia veementemente o modelo de avaliação na educação infantil proposto pela SAE, conforme veiculado pela imprensa, pois, além do exposto acima: - ao adotar um único instrumento de mensuração de habilidades nessa etapa, além do equívoco já demonstrado até mesmo por economistas que trabalham com avaliações de larga escala (…), demonstrando que testes não recobrem todos os aspectos envolvidos no processo educativo; o governo desrespeita a história de direitos até aqui alcançados; - obscurece o real problema de nossa educação, que é a insuficiência de recursos, posto que sem salários, planos de carreira e de boas condições de trabalho, não há instrumento que produza melhora na qualidade; - a proposta desconsidera que, se há problemas de qualidade em função de eventuais falhas na formação de professores, este deveria ser o ponto enfrentado, pois sem boa formação, a adoção de instrumentos padronizados de avaliação certamente não resultará em melhor qualidade, mas, antes, provavelmente leve a uma piora; - a proposta desconsidera o acúmulo desenvolvido durante a gestão do mesmo partido que, tendo agora outra pessoa no comando da presidência, mantém-se no poder; - com a proposta ampliam-se as possibilidades de abertura para o mercado comercializar os assim chamados “sistemas de ensino privados” que, até aqui, afirmavam sua importância porque com a adoção das apostilas os municípios estariam preparando melhor as crianças da pré-escola para o ingresso no fundamental, onde, por sua vez, teriam melhores resultados no Ideb; - e, por fim, a adoção de sistemas de avaliação padronizados, tais como o ASQ, já em curso no Rio de Janeiro, evidencia o aspecto mercadológico da proposta, uma vez que as empresas poderão justificar sua “importância” para que as creches e pré-escolas tenham bons resultados nas avaliações, o que não significa, certamente, melhores resultados na educação, esta compreendida como nos termos acima descritos. Sobre Luiz Carlos de Freitas Professor da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Ildo Sauer: “O ato mais entreguista da história”

Ildo Sauer: “O ato mais entreguista da história” publicado em 18 de janeiro de 2012 às 19:13 O ato mais entreguista da história foi o leilão de petróleo para Eike reprodução da revista da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo (ADUSP), número de outubro de 2011, sugerido pelo leitor ES Fernandes O professor Ildo Luís Sauer, diretor do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEEUSP), se diz um “fruto do programa nuclear brasileiro”, pois, quando estudante, o regime militar — interessado em formar quadros para tocar as dezenas de usinas que pretendia construir no país após o acordo com a Alemanha — lhe concedeu bolsa de iniciação científica, “bolsa para fazer o mestrado e o doutorado em engenharia nuclear e outras coisas mais”. Ao longo de sua trajetória acadêmica, porém, Sauer convenceu-se de que a energia nuclear não convém ao Brasil, e passou a dedicar-se mais à energia elétrica e ao petróleo. Foi diretor de Gás e Energia da Petrobras entre 2003 e 2007, período que cobriu o primeiro mandato do presidente Lula e o início do segundo, e no qual tinha a expectativa de amplas mudanças na área de energia e petróleo. Orgulha-se de haver participado das decisões que levaram à descoberta das jazidas do Pré-Sal. Mas frustrou-se ao constatar que, ao invés da reforma que ele e o físico Pinguelli Rosa propuseram a pedido do próprio Lula, o governo tomou medidas que fortaleciam os agentes privados, em detrimento das empresas públicas e da sociedade em geral. Nas páginas a seguir Sauer desfecha contundentes ataques às políticas de energia do governo, com destaque para a continuidade do modelo do setor elétrico herdado de Fernando Henrique Cardoso e — em especial — para a realização do leilão de “áreas de risco” da franja do Pré-Sal que acabaram por ser arrematadas por Eike Batista e sua OGX, fazendo desse empresário um dos homens mais ricos do mundo. O diretor do IEE não mede palavras ao opinar sobre o que ocorreu: “O ato mais entreguista da história brasileira, em termos econômicos. Pior, foi dos processos de acumulação primitiva mais extraordinários da história do capitalismo mundial. Alguém sai do nada e em três anos tem uma fortuna de bilhões de dólares”. Quanto à contestada Belo Monte, Sauer, diferentemente de uma parte dos críticos, considera que a usina preenche todos os requisitos técnicos de operação. O problema, afirma incisivamente, “não é técnico, não é econômico, o problema lá é simplesmente político”, porque, em função dos erros do governo e da falta de planejamento, “ressuscitou-se um projeto longamente gestado pelo governo militar”, e assim “de certa forma um governo democrático e popular se serve da espada criada pelos militares para cravá-la no peito dos índios e camponeses, com métodos que não deixam nada a dever à ditadura de então, em relação à forma como a usina foi feita, de repente”. Procuradas pela reportagem, as assessorias de comunicação da presidenta Dilma Rousseff e do ex-presidente Lula informaram que eles não comentariam as declarações do professor. A entrevista foi concedida a Pedro Estevam da Rocha Pomar e Thaís Carrança e ao repórter-fotográfico Daniel Garcia Revista Adusp. Recentemente assistimos a algo impensável em outras épocas: o Procon-SP, pertencente ao governo estadual do PSDB, solicitou à Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) intervenção na AES-Eletropaulo, uma empresa privatizada pelos próprios tucanos na década de 1990. O pedido decorria da constatação de que a AES mostrou-se totalmente incapaz de restaurar a energia em diversos bairros de São Paulo, dias depois de uma tempestade que derrubou o abastecimento. Mas a resposta do diretor da ANEEL também foi surpreendente: ele ironizou a solicitação, dizendo que se tivesse de intervir em uma concessionária teria de intervir em todas, tais as deficiências existentes. Como você avalia essa situação de apagões, de desrespeito à lei e de incertezas no tocante às questões que envolvem a distribuição e o consumo de energia elétrica no país? Lembrando que o próprio campus do Butantã da USP tem sofrido apagões. ILDO SAUER. A própria pergunta já é uma resposta e serve para reafirmar a perplexidade diante do relatado e o grau de irresponsabilidade de todos os últimos governos. Nos anos 1990, em que venderam a pílula mágica da privatização como saída e cura para todos os males, a promessa então era aumento da qualidade e redução do preço. Hoje, a qualidade está completamente deteriorada e o Brasil, para os consumidores cativos, tem a tarifa mais cara do mundo. Isso é uma tragédia e causa perplexidade. Mais ainda, o regime tucano foi que deu início e continuou as propostas proclamadas pelo governo Collor do neoliberalismo, então não deixa de ser uma fina ironia que agora eles próprios se revoltem, os criadores contra suas criaturas. Mas não podemos deixar de perceber também que essa criatura foi tratada a pão-de-ló e com muito carinho pelos oito anos de governo Lula e o primeiro ano do governo Dilma Rousseff. A ocasião para reformular todo esse modelo era 2003. O governo Lula, em parte, nasceu da derrocada do neoliberalismo consolidada pelo racionamento de energia elétrica de 2001. Os múltiplos apagões, “apaguinhos” e o racionamento de uma certa forma foram a pá de cal. Então, dentro do Instituto de Cidadania, dentro do Partido dos Trabalhadores, gestou-se uma proposta muito abrangente, que daria conta da reconstrução do setor elétrico brasileiro. Aliás, esse é o título de um livro cujos principais autores somos nós e o professor Pinguelli Rosa, uma equipe aqui da USP, uma equipe da UFRJ, feito a pedido do então candidato, depois eleito presidente, e da sua ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff. Ficou pronto no final de 2002 [A reconstrução do setor elétrico brasileiro, Campo Grande: Paz e Terra, 2003]. O que causa perplexidade é que, ainda que em grande parte a proposta lá consolidada teria reconstruído o setor elétrico, o fato é que a lenta, gradual, porém contínua metamorfose no seio do governo, a partir de 2003, metamorfoseou aquela proposta numa outra: aquela onde, declaradamente – em apresentações públicas da então ministra de Minas e Energia e de sua assessora jurídica, Erenice Guerra — dizia-se claramente que o novo modelo não é fruto de uma decisão do governo e, sim, uma agenda negociada com os agentes; que o governo só se manteve no papel de árbitro, quando havia divergências. Negociada entre os mesmos operadores de negócios que levaram ao racionamento de 2001 e aos apagões. Então não surpreende que dez anos depois, depois que se esgotou o potencial de sobra de energia, devido à queda do consumo de mais de 20% ocorrida em 2001-2002, não se colocou no lugar a mudança do espírito da regulação, para que novamente se passasse a ter comando e controle, que as empresas fossem obrigadas a fazer um planejamento de médio e longo prazo, contratar toda a demanda, fazer a manutenção. O contrato de concessão no Brasil tem os dois pontos que mais favorecem ao empreendedor, ao concessionário. Se na Inglaterra, no auge do neoliberalismo, criou-se a tarifa-preço, incentivada, que só periodicamente seria revista, com regulação mão-leve, no Brasil manteve-se o preço-teto junto com o equilíbrio econômico financeiro. Toda vez que há uma ameaça de perda, devido à má gestão, os consumidores são chamados a pagar. Então se o concessionário no Brasil tem a seu favor os contratos feitos, já de 1995 até 2001-2, tudo a seu favor, 2003 era a hora de fazer uma profunda intervenção regulatória, alterar aquilo que deu errado. A proposta estava feita, havia ambiente político para fazê-lo e, no entanto, em troca de manter o ambiente com os empresários e investidores privados, preferiu-se não ressuscitar os instrumentos públicos, usar mão da Eletrobras. As empresas públicas foram descapitalizadas com a criação do mercado livre, no qual 600 empresários e cento e poucas empresas comercializadoras compravam energia a 20% do custo e a revendiam a preço cheio para os consumidores finais e a meio preço para os grandes consumidores, dilapidando-se o potencial de capital das empresas públicas, que eram as principais geradoras. As principais pontas da geração eram as empresas públicas, principalmente as ligadas à Eletrobrás e às estatais do Rio Grande do Sul, mas principalmente aqui do Paraná, Minas Gerais e São Paulo. Revista Adusp. Pode citar algumas? ILDO. Cesp, Copel, Cemig, mas principalmente Eletronorte e Eletrobrás, Furnas, Chesf e Eletrosul, e a CGTEE do Rio Grande do Sul, que são federais. O governo Lula manteve a descontratação, de maneira que a energia ficou sem contratos de venda. E os empresários ditos livres não precisavam se recontratar, porque criminosamente se criou o preço de liquidação de diferenças como equivalente ao custo marginal da água. Para alterar o sistema é preciso saber se se usa água ou se se usa combustível hoje, tendo em vista a previsão de chuvas futuras, tendo em vista a previsão de demanda, o estado dos reservatórios e o custo dos combustíveis. Isso é um índice de média para orientar a operação; nunca, jamais poderia ser transformado em preço. O governo Lula, através da ministra de Minas e Energia, converteu isto, Custo Marginal de Operação (CMO), em Preço de Liquidação de Diferenças (PLD), que servia como que um preço spot, que — como houvera um racionamento e a demanda era muito menor que a oferta — caiu para o limite mínimo decretado legalmente em R$ 18 o MWhora, quando o custo da energia oscilava entre R$ 60 e R$ 140 o MW/hora. Então todos os grandes consumidores, que em 2005 já consumiam 8 mil MW médios, 25% do consumo de eletricidade do Brasil, chegaram a 12 mil MW logo em 2008 — comprados por R$ 18 a R$ 20 o MWhora, quando a energia custava às estatais, em média, R$ 100. Portanto houve uma dilapidação. Uma transferência econômica em torno de R$ 20 bilhões, nos oito anos do governo Lula, favorecendo agentes, comercializadores e grandes consumidores, que não a repassaram à redução do preço dos seus produtos, só aumentaram seus lucros. Isso obviamente gerou um ambiente de muita popularidade da ministra junto a esses centros empresariais, tanto que depois ela foi premiada com outros cargos. A outra história é que se renovaram os contratos do alumínio, iniciados em 1984-5, em Tucuruí, para a Alcoa, Alcan exportarem alumínio, que pagavam 20% do custo da energia. Pois, incrivelmente, em 2004 os contratos venceram depois de 20 anos, e foram renovados por mais 20 anos por preço da ordem de R$ 53 o MW/hora, metade do custo. Por isso a Eletronorte continua afundada em prejuízos, que são resgatados pelo Tesouro Nacional. Revista Adusp. O Tesouro está subsidiando compradores de energia barata. ILDO. Sim. Isso tudo foi feito com o loteamento da área de energia no governo. Isso são só dois ou três exemplos do que se fez ao invés do que se deveria fazer. O que deveria ter sido feito em 2003 era reformar radicalmente todos os contratos de concessão, para inclusive retirar aquela fórmula mão-grande, que todo ano tomava R$ 1 bilhão dos consumidores, porque a fórmula colocada no contrato era contra a lei, e portanto bastava uma ação administrativa da ANEEL naquele tempo já. Mas, em nome da sacrossantidade dos contratos, no começo do governo Lula ninguém quis mexer em nada. Prometeu-se mudar, mas a metamorfose foi na outra direção. E, com isso, os encargos continuaram aumentando, não se fez o que foi prometido, que era fazer um planejamento, um inventário de todos os recursos energéticos hidráulicos. Fazer estudos energéticos, econômico, técnico, e também um estudo social e um estudo ambiental, separando definitivamente a questão social da ambiental. Não tem razão nenhuma de o Ibama, que cuida de flora e fauna, cuidar de seres humanos, como se os habitantes ribeirinhos dos grandes empreendimentos, índios, camponeses, fossem uma extensão da flora e da fauna. Isso é um absurdo. No entanto, não se fizeram os estudos, a economia começou a retomar um pouco do seu crescimento em 2005, começou a haver risco de falta de energia, e o governo apelou para contratar usinas a óleo combustível e carvão importado. Houve a crítica, aí se apelou para os projetos do tipo criado no governo Fernando Henrique, na parceria de Furnas com o grupo Odebrecht, as usinas do rio Madeira, Santo Antônio e Jirau. E logo a seguir, ressuscitou-se um projeto longamente gestado pelo governo militar. E, de uma certa forma, um governo democrático e popular se serve da espada criada pelos militares para cravá-la no peito dos índios e camponeses, com métodos que não deixam nada a dever à Ditadura de então, em relação à forma como a usina foi feita, de repente. Se o governo tivesse cumprido sua obrigação — reformar o setor elétrico, recuperar o controle social sobre a qualidade e os preços da energia, fazer inventário dos potenciais hidráulicos, eólicos, de cogeração com bagaço de cana, de conservação de energia, para expandir a oferta futura, fazer os estudos sociais e ambientais, ranqueá-los, escolher na ordem os que têm mais atributos favoráveis — nem Santo Antônio e Jirau, nem Belo Monte seriam necessários agora. Haveria um conjunto muito anterior e esses grandes projetos polêmicos teriam mais tempo para o debate social, para o debate político, para a avaliação ambiental, para então depois serem definitivamente descartados, ou então, feitos num processo de coerência, de diálogo respeitoso com as populações locais. Tudo que vemos hoje no setor elétrico brasileiro é uma deterioração por falta de organização, de planejamento e de gestão. Então não surpreende que o diretor geral da ANEEL venha dizer que tinha que intervir em todas. Tinha que intervir mesmo! Por quê? Porque os últimos oito anos, nove anos, foram de degradação da qualidade dos serviços, de rapinagem do patrimônio público, porque é patrimônio concedido, a concessão é patrimônio público gerido privadamente. Foi degradado porque não há um sistema de comando e controle regulatório, porque a regulação continua na ANEEL, em Brasília, centralizada, para cuidar de Campina das Missões (RS), de Xapuri (AC), de Olivença (BA). Ou aqui em São Paulo. É em Brasília, onde todo mundo sabe que, na história da regulação, há um processo de lenta e gradual captura do regulador pelo regulado. O regulador só está em contato direto com as grandes empresas — de distribuição são 63, tem as de geração e transmissão, são umas 100 empresas permanentemente presentes. A população está ausente e pouco a pouco sai da agenda dos reguladores, para ficar apenas aquilo que ficou em 2003, anunciado publicamente pela ministra e sua assessora jurídica, de que os grandes agentes negociaram o modelo entre eles e o governo apenas interveio para arbitrar diferenças. Por isso foi mantido inteiramente no setor elétrico brasileiro o espírito da privatização e do neoliberalismo dos anos 1990. Houve uma pequena intervenção, o acolhimento de um dos elementos da proposta do Instituto de Cidadania, que foi dizer que a gente agora devia contratar de longo prazo a demanda. Só que a forma como isso está sendo feito tem dois graves problemas. O primeiro: tiraram dessa obrigação de contratar de longo prazo, para ter transparência, os consumidores livres que são um quarto da demanda. Então periodicamente tem ameaça de falta de energia porque eles não são transparentes, ninguém sabe se estão contratados ou não, eles representam metade do PIB industrial brasileiro e, com seu poder de barganha, o ônus está sendo transferido para o mercado cativo, que é 75% do consumo. Uma usina hidrelétrica leva tipicamente cinco anos para ser construída, uma termoelétrica de dois a três anos. Então, se os contratos para expandir a oferta não são feitos com essa antecedência, há o risco de as usinas não estarem prontas, nem a linha de transmissão, nem o sistema de distribuição. Então se contrata de longo prazo, mas 25% estão fora. Não há transparência, então o governo vai lá e contrata energia de reserva. Ora, a tarifa que o consumidor cativo paga prevê segurança mínima de 95%, então ele não precisa de energia de reserva; no entanto, o governo fez um leilão e contratou energia de biomassa como reserva, quando é a que menos serve para ser reserva. Quem paga, 75%: os cativos. Quem deu origem a essa necessidade foram os 25%, só que 75% dessa conta foram transferidos para nós, por isso a tarifa é das mais caras do mundo. Então esse é o primeiro problema, seríssimo, desse modelo. Se manteve a contratação como proposto, só que não para todo o mercado. O segundo problema, obviamente, é que os custos não são apropriados entre os dois. É um único sistema de produção, com dois mercados diferentes. O que virou predominante está permanentemente predando em cima do mercado cativo. Consumiram energia tendo a tarifa mais barata do mundo; e o cativo, uma das mais caras do mundo, era a terceira ou quarta mais cara. Agora, com o câmbio, o Brasil foi alçado a campeão mundial da tarifa. Revista Adusp. Cativo é a plebe? ILDO. É a plebe, são 50 milhões de consumidores, que consomem mais ou menos 75% da energia. É o pequeno e médio consumidor industrial e residencial e serviços públicos, enquanto que os 25% restantes são de cerca de 660 grandes consumidores, intermediados por mais ou menos 150 comercializadoras. Então o primeiro problema é 2003: o modelo ficou mais ou menos igual ao de antes, com esse acréscimo de contratação. Como ele não é pleno, a segunda parte é que em 2003, 2004, como eu já disse, foi renovado o contrato do alumínio, engendrou-se esse mercado livre, que transferiu assimetricamente custos e benefícios, e acima de tudo o governo manteve a energia emergencial, aqueles 1.800 MW que o governo contratou depois do racionamento, pagando R$ 6 bilhões por aluguel de usinas por três anos. Revista Adusp. São as termoelétricas? ILDO. São as termoelétricas emergenciais. A proposta era acabar com aqueles contratos e integrar aquelas usinas como reserva de capacidade das estatais. O governo Lula pagou R$ 6 bilhões de aluguel, seguro-apagão, e as usinas sumiram do mapa. Foram pagas três vezes e não tem nenhuma agora. Esse contrato terminou em 2006. Revista Adusp. Como é possível sumir do mapa? ILDO. Porque elas eram do proprietário que as alugou ao governo, depois de três anos ou ele vendeu — como a Termocabo, no Cabo de Santo Agostinho, ou a Termopetrolina, em Petrolina — ou foram desmobilizadas. Só que a população pagou três vezes para a usina e não tinha quando precisasse. E aí o governo contratou mais energia de reserva: 2 mil MW de usinas a bagaço de cana. De forma que por essas e por outras é que a tarifa explodiu e o governo não retomou o controle, nem sobre a qualidade, nem sobre o preço. Em 1995, Fernando Henrique Cardoso prorrogou as concessões das usinas hidráulicas por 20 anos, quando elas já tinham sido amortizadas antes. As concessões venceram naquele período, porque já tinham, muitas delas, 30 anos, 40 anos. Agora tem usina com 50 anos, 55 anos de produção; já foi amortizada duas, três vezes pelos consumidores cativos. E se você olhar na imprensa tem lá um grande anúncio dos consumidores industriais, possivelmente aqueles mesmos livres, dizendo que a energia brasileira não é competitiva, que é uma das mais caras do mundo. Só que isso para um mercado regulado, dos cativos, enquanto que eles pagam tarifas das mais baixas, que agora, como a sobra acabou, não tem mais; então eles estão querendo se abonar dos 22 mil MW, quase duas Itaipus de usinas antigas, as melhores do Brasil, que, pela lei, cabem ao poder público: terminada a concessão, são patrimônio público. Essas usinas gerarão, aproximadamente, 110 milhões de MWhora por ano, mais ou menos 25% do consumo brasileiro hoje, ao custo de cerca de R$ 10 o MWhora, valendo pelo menos R$110. Portanto são geradores líquidos de um valor da ordem de R$ 10 bilhões por ano, como se diz na Bahia, “por vida”. O sol move o ciclo hidrológico dessas usinas e elas estão aí, com baixo custo de manutenção. A proposta que o pessoal mais popular faz é que se crie uma Hidrobrás, uma estatal brasileira, que passe a gerenciar a operação dessas usinas, que pode até ser fisicamente operada pelas atuais empresas, como é o caso da Cesp, como é o caso de Furnas etc., mas o excedente econômico vai para um fundo público, para financiar educação e saúde pública, fazer a reforma urbana, a reforma agrária, proteção ambiental, transição energética, assim como deve ir o dinheiro do Pré-Sal também. A AES do Brasil é que sustenta sua matriz americana, desde a crise de 2008. Presta um péssimo serviço, a ANEEL não interveio antes para cobrar dela planos de investimento, espera o sistema se degradar, aí diz: “Ah, não posso fazer nada”. O contrato de concessão feito depois de 1995 de fato previa a regulação mão leve, apenas define o preço, como se a qualidade fosse algo natural, e os investimentos da manutenção de transformadores e ampliação de redes acontecessem. Havia um incentivo perverso para que fizesse o mínimo de investimento, para remeter o máximo de lucro. O governo sabia disso. Não se mudou regulação para distribuição; não se mudou a regulação e organização do sistema para transmissão; não se mudou na geração. Pois estamos colhendo os frutos daquilo que não foi feito quando era a hora, em 2003-4. Muito embora a pessoa que capitaneou esta linha, que levou o governo por este caminho, evidentemente foi muito bem premiada: foi conduzida à Presidência da República. Revista Adusp. Você mesmo mencionou que, com o crescimento econômico, há necessidade de expandir a capacidade de geração de energia. Agora, o modelo preferido pelo governo é esse, é o das grandes usinas hidrelétricas. E você mencionou alternativas. Que alternativas o Brasil teria a essas grandes usinas hidrelétricas? ILDO. Não sou, por princípio, contra as grandes, desde que todas as questões sociais, ambientais e econômicas sejam resolvidas. Para simplificar: o Brasil hoje, o território brasileiro, tem um potencial estimado em 250 mil MW de usinas hidráulicas; 82 mil MW já estão funcionando e outros quase 20 mil MW estão em construção, então chegaremos a 100 mil MW, dos 250 mil MW. É verdade que a parte significativa do potencial remanescente de grandes usinas vai para a direção da Amazônia e, principalmente, também no Centro-Oeste, todos rios que descem do Planalto Central. Há ainda em outras regiões do Brasil 17 mil MW de pequenas centrais. O potencial eólico brasileiro foi estimado em 143 mil MW, para torres de 50 metros de altura; quando se dobra a altura, se dobra esse potencial para 300 mil MW. Há uma complementariedade muito importante no Nordeste: no período com menor intensidade hidrológica, há mais intensidade eólica, e vice-versa. De uma certa forma, o regime de ventos do sertão do Nordeste e do litoral do Nordeste é complementar à hidraulicidade dos rios Tocantins, Xingu, Tapajós, Paraná e São Francisco. Existe ainda também, com o incremento da produção de energia de etanol, bagaço de cana, que pode ser usado em cogeração. Queima-se o gás natural, aumentando seu consumo em 30%, e esses 30% viram eletricidade e os outros continuam produzindo o vapor necessário, o calor, seja num hotel, num shopping center, numa indústria química, numa refinaria, onde for. Também é fato que não necessariamente o paradigma de crescimento econômico que o Brasil está seguindo hoje tem que ser seguido. Não há um vínculo tão direto entre consumo de eletricidade e bem-estar. É possível produzir unidades de Produto Interno Bruto com maior ou menor intensidade de uso da energia, dependendo de em que área isso seja. A economia na área de serviços consome pouca energia. Já produzir alumínio e ferro-ligas consome muita energia. Então é também uma matéria de escolha, com que paradigma nós vamos participar da divisão internacional do trabalho. É matéria de escolha, não é de destino. De forma que recursos naturais no Brasil não faltam. Eu citei então cerca de 300 mil MW de usinas eólicas, tem cerca de 1 mil MW já prontos de eólicas funcionando. Revista Adusp. Só 1 mil MW? ILDO. Mais ou menos 1 mil MW hoje. Está crescendo muito no Brasil, especialmente depois da crise de 2008 na Europa, havia uma produção internacional de usinas de aerogeradores e os programas incentivados da Europa e do Estados Unidos foram descontinuados. Então, com isso, a energia eólica no Brasil está muito mais barata do que a nuclear; e mais barata do que a de gás natural nos últimos leilões. Nesse sentido, então, não necessariamente as grandes usinas têm que ser feitas primeiro. O problema é que a EPE [Empresa de Pesquisa Energética] só foi criada em 2005, ela devia ter sido criada em 2002, para fazer o que ela faz, ou poder ter recuperado o papel que antigamente a Eletrobrás fazia. A EPE foi criada como uma espécie de agência reguladora neutra, para as privadas terem confiança nela. Porque a Eletrobrás não tinha usinas, quem tem são as subsidiárias, a Eletrobras perdeu o sentido agora. Ela era uma empresa que fazia estudos de planejamento, organizava e financiava investimentos. Era uma espécie de BNDES do setor elétrico. Ela ficou num limbo. Como uma organização para alavancar negócios privados nas parcerias, para assumir os riscos. Para fazer linha de transmissão, fazer usina, toda vez é um grupo privado com um grupo estatal, uma empresa do sistema Eletrobrás mais os privados. Quando o negócio vai bem, o privado prevalece. Quando começa a ir mal, se estatiza, e a muleta da Eletrobrás está lá. De forma que quem deveria ter feito os estudos é o governo. Ele preferiu uma empresa dita neutra, que é contratada num regime de prestação de serviço pelo Governo Federal, e serve para organizar os leilões. A EPE, junto com a ANEEL, faz os leilões. Não se quis que fosse uma empresa estatal de porte, para exatamente sinalizar para os empresários que o governo Lula vai manter a hegemonia do capital privado no setor de energia. Não é surpreendente por isso que, de uma certa forma, haja um movimento hoje em curso, com utilização da influência do governo via fundos de pensão, Previ, Petros, etc., que têm investimentos em distribuidoras elétricas, para fazer da Camargo Corrêa, que hoje controla a CPFL, a campeã nacional das redes elétricas. Como já se fez, depois daquele enorme imbróglio da BrT, Telemar e Tim, se transformou a Andrade Gutierrez na dona da telefonia celular no Brasil e da telefonia em geral. Como se manobrou a Petrobras para converter a Braskem, do grupo Odebrecht, na dona da petroquímica nacional. Como se está fazendo no petróleo, ao criar o homem mais rico do mundo em menos de três anos, dando-lhe o que hoje já são 10 bilhões de barris de petróleo, em pouco mais de três anos. Quando ele recolhe dentro da Petrobras o núcleo estratégico de planejamento e de exploração e produção, comandado pelo gerente executivo Paulo Mendonça: saíram 15 a 16 pessoas desse núcleo, que junto com o contrato dado, mantido pelo governo Lula em novembro de 2007, formou patrimônio, para quê? Contratou leilão, formou a empresa em julho de 2007, obteve as concessões em novembro; e, em julho de 2008, fez a Initial Public Offering e a empresa já valia US$ 10 bilhões. E agora, depois de alguns anos de exploração, anunciou essa semana que tem 10 bilhões de barris de petróleo de reservas, quando a Petrobras, em mais de 50 anos antes do Pré-Sal, conseguiu chegar a 20 bilhões de barris, produziu cinco e tinha 15. Isso é uma empresa privada, a OGX, que daqui a oito anos vai estar produzindo mais petróleo do que a Líbia produz hoje. Os Estados Unidos têm 29 bilhões de barris de reservas e ele anuncia que tem 10 bilhões de barris. Portanto, um senhor só controla hoje o equivalente a um terço das reservas de petróleo dos Estados Unidos. Isso tudo foi a operação do governo de 2003 a 2006, na área de energia, para permanentemente se associar aos capitais nacionais, em adição aos internacionais, que já tinham vindo aqui na época da hegemonia da teoria da dependência associada. Vieram os estrangeiros pelo governo Fernando Henrique, e no governo Lula criaram-se os campeões nacionais com a ajuda generosa do BNDES e de todas as estatais, que foram instrumentalizados para tal. Como a própria Petrobras de um lado, o sistema Eletrobras de outro e, acima de tudo, o BNDES em todas. De forma que na área de energia, petróleo, gás e eletricidade esta é a mensagem. É dessa mensagem que resulta a deterioração, porque não é possível dar o melhor de tudo para os empresários, para os concessionários e os contratantes, sendo generosos em termos de não cobrar a qualidade, de não cobrar a redução de custos, e ao mesmo tempo querer atender a população. Alguém tem que ganhar, alguém vai perder nessa história. Até agora o perdedor tem sido o consumidor cativo do setor elétrico e também o de biocombustíveis, como nós vimos no tumulto todo em torno dos carros flex fuel e da mensagem subreptícia que foi passada, de que álcool sempre estaria disponível e barato, quando isso era impossível, pelo outro arranjo, no outro setor. Parece muito simplório dizer isso, mas eu posso demonstrar com dados que o fato de não terem sido refeitos os contratos de concessão, para criar novas obrigações, para reequilibrar a equação da tarifa com a qualidade, e ter instrumento de permanente acompanhamento local, é que gerou a deterioração na distribuição, que gerou os apagões, gerou os “apaguinhos”, a descapitalização das empresas estatais, que operam grandes linhas de transmissão, como aquelas de Itaipu. E o privilégio que se dá para as estatais jogarem todo o dinheiro novo delas para fazer parcerias com as privadas na expansão de grandes usinas, como Belo Monte, Santo Antônio e Jirau, ou linhas de transmissão, fez com que elas não usassem o dinheiro para fazer a manutenção das redes de transmissão, e muitas vezes as próprias usinas de geração antigas, que poderiam ser modernizadas e repotenciadas. Revista Adusp. De Belo Monte se diz que, além dos impactos ambientais, dos danos causados às populações humanas, a usina não compensaria os investimentos, que são enormes, uma vez que parte do seu potencial seria inaproveitável durante a estação seca. Queria saber, em primeiro lugar, se esse argumento na sua opinião procede. E, sobre as pequenas hidrelétricas, se você as considera viáveis para eventualmente substituir essas usinas gigantes, ou se seriam apenas uma fonte complementar de energia. ILDO. Sobre Belo Monte, eu estive pessoalmente em dezembro de 1992, junto com a CABA, Comissão dos Atingidos por Barragens da Amazônia, que era uma subsidiária de então do MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens], junto com a CUT e a Comissão Pró-Índio. Eu e o professor David Zilberstein estivemos lá dando um curso de duas semanas para camponeses, lideranças indígenas e sindicatos em geral. Com essas duas semanas e o livrinho que nós produzimos aqui no Instituto ajudamos a manter a resistência das comunidades locais ao projeto, que então ainda era herança direta do governo militar nos anos 1990, que visava fazer grandes usinas naquela região, para subsidiar a produção de alumínio de exportação, principalmente usando bauxita do rio Trombetas, em Oriximiná e no Carajás. O projeto entrou em ocaso, porque a economia brasileira entrou em crise. Com a resistência local e a índia Tuíra, que afiou seu facão e o colocou no pescoço do então presidente da Eletronorte, os projetos ficaram fora. Eis que, de repente, no final do segundo governo Lula, ressuscita-se Belo Monte, como um desespero extraordinário, para salvar a lavoura brasileira. Tudo porque, como eu disse antes, não se fez o estudo do inventário adequado, em termos energéticos, econômicos, técnicos, ambientais e sociais, do potencial hidráulico remanescente. A usina de Belo Monte, do ponto de vista natural — é uma controvérsia que precisa ser esclarecida — tem atributos muito favoráveis. Todos os rios da Bacia Amazônica têm a hidrologia muito sazonalizada, caindo sua vazão muitas vezes para um quarto durante o período seco. O período chuvoso começa em novembro, vai até maio, tipicamente, depois começa a seca, que vai até novembro de novo, e aí os caudais são extremamente menores. Não obstante, mesmo assim, ainda que Belo Monte custe 50% mais do que foi anunciado no orçamento, chegue a R$ 30 bilhões, ainda assim, do ponto de vista econômico, é um dos aproveitamentos com bons atributos. O problema de Belo Monte não é nem a geologia: pode haver dúvidas sobre a geologia, mas parece que esses problemas foram resolvidos. Então o problema não é técnico, não é econômico, o problema lá é simplesmente político. É o desrespeito que o governo Lula impôs à população que estava já há mais de 20 anos em pé de guerra, desde os anos 1970, contra o projeto. O mínimo que se esperava era que os estudos ambientais tivessem sido aprofundados, não levassem à demissão de vários técnicos no âmbito do Ibama. Isso não é um tratamento politicamente aceitável, vindo de um governo que foi eleito como democrático e popular. De repente, parece que a pressão sobre a demanda e a pressão das grandes empreiteiras conjugaram-se — e o governo Lula achou que tinha força política, mediante a ameaça de racionamento, sem reconhecer que, se houvesse risco, era só porque ele não tomou as precauções e medidas necessárias para produzir energia de outras formas. Como eu já disse antes, os números são eloqüentes: há mais de 150 mil MW de outras usinas hidráulicas, cerca de 300 mil MW de usinas eólicas, cerca de 15 mil MW de bagaço de cana, cerca de 10 mil MW a 15 mil MW com cogeração a gás natural, um potencial grande de racionalização do uso possível, conservação de energia, e, acima de tudo, 17 mil MW de pequenas centrais hidrelétricas. A dotação de recursos naturais, capacitação tecnológica, recursos humanos e financiamento generoso do BNDES, está tudo aí. Dá para escolher qualquer projeto para atender, basta planejar, gerir e organizar. Três coisas que não foram feitas no setor energético, apesar do que deveria ter sido aprendido com o racionamento e os apagões que precederam 2001. Tanto que o governo Lula teve dois apagões nacionais em dois anos; o governo Dilma, em poucos meses, já empatou. De forma que Belo Monte tem atributos naturais, essa polêmica em torno da sazonalidade não se sustenta, até porque todas as usinas são assim. O reservatório lá vai ser pequeno, mas dá para conjugar com o reservatório das outras grandes usinas que ainda existem, os reservatórios de acumulação. Belo Monte vai ser uma usina tipicamente a fio d’água, praticamente toda a água que passa é turbinada, e a que não é turbinada vai para o vertedouro, não é acumulada como previa o projeto antigamente, que ia inundar todo o rio Iriri, que é outro afluente do Xingu, e o próprio Xingu, quilômetros e quilômetros a montante das duas barragens que estavam previstas lá, que eram Babacuara e Cararaú, os nomes originais desses empreendimentos. Então essa é minha visão sobre Belo Monte: tem um projeto com atributos naturais, isso não quer dizer que deva ser feito. Como ninguém hoje está propondo barrar as cataratas do Iguaçu, nem as do Niágara. Quando há situações muito fortes que se sobrepõem, não se precisa fazer, até porque não há necessidade, há outros recursos. Quanto às pequenas centrais hidrelétricas, não se pode falar genericamente, porque cada caso é um caso: depende sempre da hidrologia, topografia, geologia e da proximidade com os demais centros. Normalmente, as pequenas centrais elétricas têm enormes vantagens. Porque elas, evidentemente, causam algum impacto no meio ambiente, mas têm reservatórios só de regularização diária ou semanal, no máximo, portanto são menores, servem para piscicultura, servem para recreação e servem como depósito de água para uso em irrigação e mesmo em abastecimento público. Casos muito interessantes para se olhar são, por exemplo, as usinas do Departamento Municipal de Águas de Poços de Caldas, que praticamente tornaram a cidade autônoma em energia há muito tempo, e geraram lazer, com pousadas, hotéis, para recreação no entorno dessas usinas. Então muitas vezes elas têm custo favorável e têm esses benefícios colaterais. O potencial estimado é de 17 mil MW, é mais do que Itaipu, Itaipu hoje está com 14 mil MW. No Brasil hoje, então, o que se pode dizer como síntese é que recursos naturais não faltam, o que falta é planejamento, gestão e organização do sistema e atributos. Porque o setor de energia é marcado pela presença de um fenômeno que se chama de possibilidade de geração de rendas absolutas e diferenciais, ou então lucro suplementar, ou super-benefício. É uma condição na qual o capital e o trabalho alocados socialmente têm um retorno muito maior do que teriam se fossem alocados no sistema de capital concorrencial. Tipicamente o retorno para ele é hoje de 8%, 10% ao ano. Numa usina hidráulica ou num posto de petróleo, esse lucro suplementar é de uma enorme dimensão. É o que eu falei antes das usinas hidráulicas amortizadas: elas têm custo de R$ 10 o MW/hora, no máximo; produzem algo que vale R$ 110; sobram R$ 100, que é o lucro suplementar, que nós propomos que seja apropriado publicamente e não em benefício do grande capital, como quer essa campanha pública que já está nas manchetes dos jornais, subrepticiamente, e com notas, como saiu na Folha de S. Paulo. Revista Adusp. Que campanha é essa? ILDO. É uma campanha para que as usinas hidráulicas cujas concessões vencem até 2015 sejam destinadas à chamada modicidade tarifária do sistema produtivo brasileiro. Quer dizer, eles querem comprar energia a R$ 10 o MW/hora, ao invés de ajudar… Porque depois de quase nove anos de “Luz para Todos”, dos 12,5 milhões de brasileiros que estavam às escuras ainda têm 2,5 milhões às escuras. Em três anos era possível ter eletrificado todo mundo, no entanto, nove anos depois ainda tem 2,5 milhões às escuras, e o governo ainda prorrogou o “Luz para Todos” para 2014. Por quê? Falta de recursos. Ora, onde é que está o recurso? A Constituição diz que o petróleo de subsolo é da nação, que os potenciais hidráulicos são da nação. Se as usinas já amortizadas, pagas duas ou três vezes pelo consumidor brasileiro, agora pertencem ao Tesouro Nacional, só esses 22 mil MW cujas concessões vão vencer até 2015 dariam, como eu disse antes, uma geração líquida da ordem de R$ 10 bilhões a R$ 15 bilhões por ano. É o volume que é gasto com Bolsa Família, poderia fazer uma nova educação pública, saúde pública. Revista Adusp. O Brasil pretende construir hidrelétricas em sete países da América Latina. Além das críticas ambientais, tem as críticas das populações locais de que se trataria de imperialismo. ILDO. Subimperialismo, sim. Eu vejo isto como uma das faces da chamada mudança, em homenagem à “Carta aos Brasileiros”, que o Lula acrescentou à política hegemônica do Fernando Henrique Cardoso. Eles se valeram do discurso teórico dos cepalinos, que viam a necessidade de induzir a construção de grupos econômicos nacionais e aí, além de fazer aquilo que eu disse antes no Brasil, com a petroquímica e tal, ainda alçaram a África e a América do Sul às quatro grandes empreiteiras, com financiamento do BNDES, para criar algo que se aproxima de um subimperialismo regional. Impor essas usinas, muitas vezes negociadas com processos politicamente questionáveis com as lideranças locais. E aí vê o escândalo que foi uma empresa do porte da Odebrecht fazer a usina no Equador, US$ 500 milhões, e a usina não funciona. Com dinheiro do BNDES. E o governo brasileiro entrando em arbitragem nos fóruns jurídicos internacionais para obrigar o pobre povo do Equador a pagar por uma usina que não funciona. Isto é uma vergonha. Isso está acontecendo, eles fazem qualquer obra, a qualquer custo, desde que as autoridades locais aceitem. Isso tanto na África como aqui, para fazer biocombustíveis e obras hidrelétricas, rodoviárias, principalmente, e outras usinas. Está sendo feito. O mais grave foi Inambari, no Equador. Veja, Inambari fica 700 km para lá de Santo Antônio e Jirau, que ficam a 2,4 mil km de São Paulo. Nós temos o potencial tão grande aqui no Brasil que citei há pouco. Na dissertação de mestrado da Juliana Ricosti nós mostramos que, se a gente usar parte desse potencial que eu citei há pouco, em 2020 — quando a população, segundo o IBGE, vai se estabilizar em 220 milhões de habitantes — será possível dobrar o consumo per capita de hoje, usando apenas cerca de 50% do potencial eólico e 70% do potencial hidráulico, complementados com essas outras coisas que eu disse, e ainda sobraria. Isso daria 1.100 milhões de MW/hora. Hoje nós possuímos cerca de 400 milhões de MW. Então sobraria ainda energia com potencial remanescente para, por exemplo, transformar grande parte da frota de veículos de combustíveis líquidos para elétricos, assim ajudando a despoluir o ar das grandes metrópoles, que é um grave problema de saúde pública hoje. Por que ir para o Peru? Não teria sentido fazer hidrelétrica no Peru ou na Bolívia para mandar energia para cá, porque vai ser mais cara, instabiliza mais ainda o sistema elétrico, por causa das longas linhas de transmissão. A única razão é o negócio em favor das empreiteiras, que são o sócio predileto. Citei as quatro grandes, como elas criaram um naco do capitalismo brasileiro: Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS e Camargo Corrêa. Estão em toda América do Sul, na África e na América Central também, com dinheiro do BNDES, e a Eletrobrás entra como garantidora. Que opera [no exterior] inteiramente livre dos controles públicos do Tribunal de Contas da União. O ambiente é mais livre, tem mais agilidade para fazer negócios. E o BNDES tem sido a mãe de todos, porque o governo pega dinheiro do público a 12,5%, capitaliza o BNDES, que passa a emprestar a 6%, 7% ao ano. Tem, além dessas relações complicadas com as populações locais, relações complicadas com líderes políticos, muitas vezes desprestigiados, como o que saiu do Peru agora. Sempre permanece em brumas e obscuridade o que foi negociado nesses projetos. Revista Adusp. Vamos para outro “departamento”. A Alemanha acaba de sepultar o seu programa de energia nuclear. O Brasil deve abandonar a energia nuclear, desativar as usinas de Angra? Ou, ao contrário, deve persistir nessa seara? ILDO. Este é meu campo predileto, porque sou engenheiro nuclear. Eu abandonei a energia nuclear em 1991, quando vim para a USP, porque já então eu achava que era um caminho não prioritário para o Brasil. Havia outros recursos, como já discutimos há pouco. Isso porque o impacto de Three Mile Island havia sido um tsunami financeiro já então. Não mais do que isso, porque não houve problemas de radioatividade fora do controle em grande escala. Chernobyl revelou a face que a falta de cuidado pode significar, em relação ao permanente risco da opção nuclear, porque o critério de segurança lá era muito primitivo, eram usinas sem barreira de proteção múltipla. Há países onde a opção nuclear dificilmente tem condição de ser abandonada, se não for substituída por carvão, como é o caso da China. Então eu separo o debate dentro do Brasil e fora. Como repositório natural de energia herdado do Big Bang e do seu reprocessamento ao longo de corpos celestes, que depois vieram formar a Terra, evidentemente o urânio, o deutério e o trítio representam uma fonte enorme de energia natural e não pode ser descartada. Mas no caso brasileiro, particularmente, a previsão do acordo nuclear Brasil-Alemanha era de que em 1990 teríamos oito usinas nucleares, mais Angra I; em 2000, 40 usinas nucleares; em 2016, 160 usinas nucleares no Brasil. Essa era a previsão dos militares, quando criaram o programa nuclear brasileiro, quando me deram bolsa para fazer o mestrado e o doutorado em engenharia nuclear e deram bolsa de iniciação científica e outras coisas mais. Então eu sou fruto do programa nuclear brasileiro. No entanto, Angra I levou vinte e poucos anos para ser concluída; Angra II, 21 anos; e Angra III deveria ter sido abandonada. Já está em R$ 10 bilhões o orçamento a ser utilizado para concluir Angra III. O governo está propondo no seu plano ainda mais quatro usinas nucleares, juntas elas vão custar mais R$ 40 bilhões. Na dissertação de mestrado da Juliana Ricosti, que está à disposição de vocês, simulamos a retirada de todas as usinas que entrariam depois de 2015, as quatro nucleares, só não tiramos Angra III porque eles já estão querendo concluí-la, todas as usinas a carvão e a óleo, e simulamos colocando eólica. Concluímos que o custo de fazer só eólica e hidráulica, com complementação térmica, seria muito menor. Como eu disse antes, o Brasil não precisa das nucleares, tem outros recursos, é uma condição diferente da dos demais países. Poderíamos simplesmente abandonar as quatro nucleares novas. É importante notar que o governo está fazendo um processo de aliciamento no Nordeste, nas margens do São Francisco, que precisa de água para resfriamento, eles estão anunciando que as nucleares poderão ser a salvação contra a pobreza, porque ser vizinho de uma usina nuclear vai render royalties, como rende em Angra, rende uma contribuição anual às prefeituras. É uma espécie de compra pelo direito de colocar algo perigoso no seu quintal. No Brasil, então, a conta que eu fiz foi a seguinte: ao invés de gastar R$ 40 bilhões ou R$ 50 bilhões para fazer Angra III mais quatro nucleares, você pode com R$ 25 bilhões fazer a mesma capacidade de geração de energia usando hidráulicas, eólicas, complementadas termicamente. Gastar só metade e praticamente não vai queimar combustível, nem vai deixar piscinas inteiras, cada uma delas, para cada reator que operar 30 anos, com mil toneladas de elementos combustíveis queimados ao longo da vida útil, que exigem cuidado. Se você for reprocessar, quebrar e separar, você precisa de 300 anos para cuidar dos resíduos. Se não reprocessar, são cerca de 2 mil anos para esperar que fiquem inofensivos. Deixar de herança para nossos netos, bisnetos, gerações futuras, a carga de cuidar de elementos radioativos, que vão exigir custos por séculos, se não milênios, é absolutamente despropositado. O absurdo de Angra III é o seguinte: eles ressuscitaram um contrato que estava hibernando por duas décadas, com a Andrade Gutierrez. Os primeiros contratos da era nuclear o presidente Geisel deu a seu amigo Norberto Odebrecht. Para evitar o monopólio da tecnologia nuclear na mão da Odebrecht, o terceiro contrato quem ganhou foi a Andrade Gutierrez. Décadas depois, eles conseguiram ressuscitar o contrato. Ironicamente, é a mesma Andrade Gutierrez que herdou também as telecomunicações do país. O grande monopólio privado, como dizia o ex-ministro para mim: “Nós não podemos colocar tudo na mão das empresas estatais e do governo, temos que ajudar essas empresas, que podem nos ajudar.” Eu não entendia o que era “nos” ajudar nessa conversa. Revista Adusp. Vamos para o Pré-Sal. Você foi diretor de Gás e Energia da Petrobras. ILDO. Cinco anos. Revista Adusp. A descoberta das reservas do Pré-Sal sugere que o país reforçou extraordinariamente a sua condição de produtor de combustível fóssil e que, com isso, obterá recursos financeiros de tal monta que poderá investir maciçamente em áreas até agora relegadas, tais como educação, ciência e tecnologia. Por outro lado, quando mais se fala em energia limpa, o Brasil se compromete enormemente com fontes fósseis de energia, cujo potencial poluidor é conhecido. Como você analisa esse quadro contraditório? ILDO. Não acredito que o regime capitalista tenha condições, sem se aprofundar numa crise mais violenta do que a que já viveu até hoje, de abrir mão dos recursos remanescentes do petróleo. A população era de 700 milhões de habitantes em 1750. A Era do Carvão a elevou para 1,7 bilhão, com o incremento extraordinário da produtividade do trabalho social. A Era do Petróleo praticamente se aprofunda de 1910 a 1920, e é hegemônica ainda até agora, como processo de incremento extraordinário da produtividade do trabalho e da circulação de mercadorias, no âmbito industrial, urbano e de circulação, conquanto a eletricidade foi mais para alguns tipos de fábrica e algumas coisas do ambiente urbano. Lenin dizia que socialismo é soviete mais eletricidade. Ele tinha razão porque a eletricidade chegando, a produtividade do trabalho aumentava, saía-se da era de quase caçador e coletor, pré-revolução agrícola, para uma era pós. Então não há que desprezar o que aconteceu na União Soviética em termos de fenômeno de produção. Incremento extraordinário com apropriação social da energia. A apropriação do petróleo pelo capitalismo para incrementar a produtividade do trabalho fez a população pular de 1,7 bilhão, em 1910, para 6 bilhões de pessoas, 100 anos depois. Produz-se em escala sem precedentes, circula-se em escala sem precedentes. O PIB mundial hoje é de US$ 60 trilhões, mais ou menos; o excedente econômico do petróleo sozinho é US$ 3 trilhões. Hoje um barril custa menos de US$ 10, vale mais de US$ 100. Produzem-se hoje 85 milhões de barris por dia, que dá uns 30 bilhões de barris por ano. O excedente é US$ 100 por barril, vezes 30 bilhões, isso dá US$ 3 trilhões por ano, que é um excedente econômico disputado com todas as armas para incrementar a acumulação capitalista. Isto é produção de valor sem alocar trabalho de capital, é o chamado lucro suplementar. Então se invade o Iraque, se ameaça a Venezuela, se cria a 4ª Frota para vigiar o Atlântico Sul quando o Pré-Sal brasileiro vai até 300 km mar adentro e não é reconhecido que isso é mar territorial pelos países. Os Estados Unidos têm 30 bilhões de barris de reservas: dá para três anos se eles quiserem produzir seu próprio petróleo, consumindo cerca de 9 bilhões/ano. O capitalismo mundial não consegue operar sem o petróleo, por esses atributos. Substituir o petróleo significa gastar muito mais trabalho, muito mais capital, para fazer a mesma produção. Quando o mundo de hoje precisaria, se fosse possível pensar utopicamente, satisfazer as necessidades dos 2 bilhões de famintos que vivem abaixo da linha de pobreza, dos outros 2 bilhões de remediados; significa que deveríamos produzir mais, portanto incrementar a produtividade industrial do trabalho, mas, acima de tudo, redistribuir melhor o produto social do sistema econômico. Esse é o dilema. Isso evidentemente agrava a questão ambiental global da biosfera. Só que eu não vejo saída, a não ser uma saída gradual. Não é possível imaginar, como muitos da sustentabilidade vulgar fazem crer, que os processos são circulares, que retornam sempre ao mesmo ponto. A história só anda para frente, é um processo dialético permanente de rupturas e mudanças. Achar que o mar sempre vai ser do mesmo jeito, a atmosfera, é ilusão. E aí, como é que eu coloco o Pré-Sal nessa história? Primeiro, que a demanda mundial de petróleo vai ser satisfeita, independentemente de com que recursos, ou vai ser substituído por coisas piores como carvão liquefeito, por um processo Fischer-Tropsch. Você usa carvão para separar a molécula da água em hidrogênio e oxigênio, combina os hidrogênios com carbono e faz qualquer cadeia de combustível, que pode ser GLP, pode ser gás natural, pode ser gasolina, pode ser querosene, pode ser óleo combustível. Quanto custa? US$ 80, que aliás é o preço diretor, o preço social de produção da energia. Marx já previa isso, ele estava correto. É o carvão que determina o preço do petróleo, porque ele é o único substituto em escala global. Então, do ponto de vista da apropriação da renda absoluta, renda diferencial, todos aqueles que controlam o oligopólio do petróleo não abrem mão dele, a não ser pelo seu preço social alternativo, que é dado pelo preço social de produção do carvão, que seria a alternativa em escala mundial, capaz de satisfazer as necessidades energéticas. Talvez no futuro, se a tecnologia evoluir muito, podem ser os renováveis, ou então a nuclear. Porque o bolsão de petróleo remanescente convencional hoje é de cerca de 1,8 trilhão de barris. Nós estamos consumindo hoje 30 bilhões de barris por ano, portanto teria, teoricamente, [estoque para] 60 anos. No entanto, nesse quadro, eu não vejo como se poderá abrir mão do petróleo. Ainda que fosse um desejo de apropriar mais energia renovável, aumentar a produtividade dos sistemas tecnológicos que apropriam energia do sol, o recurso menos disponível na Terra é o do petróleo. Energia natural não falta. Aquela que é disputada é a que permite maior excedente econômico, especialmente aquela que gera o lucro suplementar tão grande quanto é o petróleo hoje. Não há nada que se compare. Mesmo num sistema socialista, se eu me lembro bem do que disse o Lenin, também não se poderia abrir mão daqueles recursos que permitem produzir mais com menos trabalho, para satisfazer mais necessidades, ao invés de só acumular e botar no balanço das empresas, que é o que o capitalismo faz — essa é a grande diferença. No entanto, nesse quadro, é absolutamente inaceitável o modelo que foi aprovado, depois que o Pré-Sal foi confirmado, em 2005, quando se furou o poço de Paraty. No poço de Paraty, debaixo do sal, havia petróleo, confirmando uma suspeita de três, quatro décadas. Em 2005 foi Paraty, 2006 Tupi chegou. Revista Adusp. Você ainda estava na Petrobras? ILDO. Eu ajudei a tomar essa decisão. Nós tomamos essa decisão, não sabíamos quanto ia custar. O poço de Tupi custou US$ 264 milhões, para furar os 3 km de sal e descobrir que tinha petróleo. O Lula foi avisado em 2006 e a Dilma também, de que agora um novo modelo geológico havia sido descoberto, cuja dimensão era gigantesca, não se sabia quanto. Então, obviamente, do ponto de vista político, naquele momento a nossa posição, de muitos diretores da Petrobras, principalmente eu e Gabrielli, que tínhamos mais afinidade política com a proposta do PT de antigamente, a abandonada, achávamos que tinha que parar com todo e qualquer leilão, como aliás foi promessa de campanha do Lula. Na transição, ainda a Dilma falou, “não vai ter mais leilão”. Mas se subjugaram às grandes pressões e mantiveram os leilões. Fernando Henrique fez quatro, Lula fez cinco. Lula entregou mais áreas e mais campos para a iniciativa privada do petróleo do que Fernando Henrique. Revista Adusp. Mas Gabrielli era contra e acabou concordando? ILDO. Não. A Petrobras não manda nisso, a Petrobras é vítima, ela não era ouvida. Quem executa isso é a ANP [Agência Nacional do Petróleo], comandada pelo PCdoB, e a mão de ferro na ANP era da Casa Civil. Então a voz da política energética era a voz da Dilma, ela é que impôs essa privatização na energia elétrica e no petróleo. Depois do petróleo já confirmado em 2006, a ANP criou um edital pelo qual a Petrobras tinha limitado acesso. Podia ter no máximo 30% ou 40% dos blocos, necessários para criar concorrência. Porque, em 2006, Tupi já havia sido furado e comunicado. O segundo poço de Tupi, para ver a dimensão, foi feito mais adiante, esse ficou pronto em 2007. Só que o Lula e a Dilma foram avisados pelo Gabrielli em 2006. Muitos movimentos sociais foram a Brasília, nós falávamos com os parlamentares, os sindicatos foram protestar. O Clube de Engenharia, que é a voz dos engenheiros, mandou uma carta ao Lula, em 2007, pedindo para nunca mais fazer leilão. Em 2005-6, o [Rodolfo] Landim, o queridinho do Lula e da Dilma, saiu da Petrobras. Porque o consultor da OGX, do grupo X, do senhor [Eike] Batista, era o ex-ministro da Casa Civil, e ele sugeriu então que Eike entrasse no petróleo. Aí ele contratou o Landim, que começou a arquitetar. Como o centro nevrálgico da estratégia da Petrobras é a gerência executiva de exploração, o geólogo Paulo Mendonça, nascido em Portugal, formado aqui na USP, e o Landim, articularam para em 2007 criar uma empresa nova, a partir dos técnicos da Petrobras. E o senhor Batista queimou alguns milhões de dólares para assinar os contratos e dar as luvas desses novos cargos, que estavam dentro da Petrobras mas, desde que o Landim foi trabalhar com o senhor Batista, ele já estava lá para arrancar de dentro da Petrobras esses técnicos. Aí chegou o fim de 2007, todos nós pressionando para não ter mais leilão, o Lula tira 41 blocos… Veja, vamos voltar a 2006. Em 2006, quem anulou o leilão foi a justiça, por discriminação contra a Petrobras, feita pelo governo do PT, comandado pelo PCdoB na ANP, a mando da Dilma. Como diz o próprio PCdoB, o Haroldo Lima só executou ordens do governo, como fiel cumpridor, não é iniciativa dele fazer essas coisas. Ouvi isso da Jô Moraes, num debate na Câmara dos Deputados. Só que aí se criou o seguinte imbroglio: um ex-ministro do governo Lula e dois do governo Fernando Henrique, Pedro Malan e Rodolpho Tourinho, foram assessorar o Eike Batista. Ele já tinha gasto um monte para montar sua empresa de petróleo. Se o leilão fosse suspenso, ele ia ficar sem nada, e já tinha aliciado toda a equipe de exploração e produção da Petrobras. O que caberia a um governo que primasse por um mínimo de dignidade para preservar o interesse público? Cancelar o leilão e processar esses caras que saíram da Petrobras com segredos estratégicos. Por que não foi feito? Porque tanto Lula, quanto Dilma, quanto os ex-ministros, os dois do governo anterior e um do governo Lula, estavam nessa empreitada. Revista Adusp. Quem era o ex-ministro? ILDO. O ex-chefe da Casa Civil, antecessor de Dilma. Revista Adusp. José Dirceu? ILDO. É, ele foi assessor do Eike Batista, consultor. Para ele, não era do governo, ele pegou contrato de consultoria, para dar assistência nas negociações com a Bolívia, com a Venezuela e aqui dentro. Ele [Dirceu] me disse que fez isso. Do ponto de vista legal, nenhuma recriminação contra ele, digamos assim. Eu tenho contra o governo que permitiu se fazer. E hoje ele [Eike] anuncia ter 10 bilhões de barris já, que valem US$ 100 bilhões. Até então, esse senhor Batista era um milionário, tinha cerca de US$ 200 milhões. Todo mundo já sabia que o Pré-Sal existia, menos o público, porque o governo não anunciou publicamente. As empresas que operavam sabiam, tanto que a Ente Nazionale Idrocarburi D’Italia (ENI) pagou US$ 300 milhões por um dos primeiros poços leiloados em 2008. Três ou quatro leilões foram feitos quando o leilão foi suspenso pela justiça. Até hoje, volta e meia o [ministro] Lobão ameaça retomar o leilão de 2008, 2006. A oitava rodada. Para entregar. Tudo em torno do Pré-Sal estava entregue naquele leilão. No leilão seguinte, o governo insiste em leiloar. E leiloou. E na franja do Pré-Sal é que tem esse enorme poderio. Como é que pode? A empresa dele foi criada em julho de 2007. Em junho de 2008 ele fez um Initial Public Offering, arrecadou R$ 6,71 bilhões por 38% da empresa, portanto a empresa estava valendo R$ 17 bilhões, R$ 10 bilhões dele. Tudo que ele tinha de ativo: a equipe recrutada da Petrobras e os blocos generosamente leiloados por Lula e Dilma. Só isso. Eu denunciei isso já em 2008. Publicamente, em tudo quanto é lugar que eu fui, eu venho falando para que ficasse registrado antes que ele anunciasse as suas descobertas. Porque fui alertado pelos geólogos de que lá tinha muito petróleo. Foi um acordo que chegaram a fazer, numa conversa entre Pedro Malan, Rodolpho Tourinho e a então ministra-chefe da Casa Civil, em novembro, antes do leilão. O Lula chegou a concordar, segundo disse o pessoal do MST e os sindicalistas, em acabar com o leilão. Mas esse imbroglio, de o empresário ter gasto dezenas de milhões de dólares para recrutar equipe e apoio político nos dois governos fez com que eles mantivessem… Tiraram o filé-mignon, mas mantiveram o contra-filé. O contra-filé é alguém que hoje anuncia ser o oitavo mais rico do mundo. E tudo foi mediante essa operação no seio do governo. Contra a recomendação dos técnicos da Petrobras, do Clube de Engenharia, do sindicalismo. Foi a maior entrega da história do Brasil. O ato mais entreguista da história brasileira, em termos econômicos. Pior, foi dos processos de acumulação primitiva mais extraordinários da história do capitalismo mundial. Alguém sai do nada e em três anos tem uma fortuna de bilhões de dólares. A Petrobras durante a vida inteira conseguiu descobrir 20 bilhões de barris de petróleo, antes do Pré-Sal. Este senhor, está no site da OGX, já tem 10 bilhões de barris consolidados. Os Estados Unidos inteiros têm 29,4 bilhões de barris. Ele anuncia que estará produzindo, em breve, 1,4 milhão de barris por dia — o mesmo que a Líbia produz hoje. É esse o quadro. Ou a população brasileira se dá conta do que está em jogo, ou o processo vai ser o mesmo de sempre. Do jeito que foi-se a prata, foi-se o ouro, foram-se as terras, irão também os potenciais hidráulicos e o petróleo, para essas negociatas entre a elite. O modelo aprovado não é adequado. Mantém-se uma aura de risco sem necessidade, para justificar que o cara está “correndo risco”, mas um risco que ele já sabe que não existe. Qual é a nossa proposta? Primeiro, vamos mapear as reservas: saber se temos 100 bilhões, 200 bilhões, 300 bilhões de barris. Segundo, vamos criar o sistema de prestação de serviço: a Petrobras passa a operar, recebe por cada barril de petróleo produzido US$ 15 ou US$ 20, e o governo determina o ritmo de produção. Porque há um problema: a Arábia Saudita produz em torno de 10 milhões de barris, a Rússia uns 8 milhões de barris, depois vêm os outros, com 2 a 4 milhões de barris por dia: Venezuela, Iraque, Irã. O Eike Batista anuncia a produção de 1,4 milhão de barris, a Petrobras anuncia 5 milhões de barris e pouco. Significa que o Brasil vai exportar uns 3 ou 4 milhões de barris. Já é o terceiro ator. Não se pode fazer mais isso. Toda a longa trajetória da história do petróleo culmina a partir de 1960 com a criação da Opep [Organização dos Países Exportadores de Petróleo]. Tudo para que? Para acumular o excedente econômico, a renda. Então você não pode ter alguém no mercado que não opere de maneira coordenada. E a lógica dos contratos de concessão — já entregaram 28% do Pré-Sal e dos de partilha que querem fazer — é de que de você assina o contrato, tem um prazo para começar a explorar, concluir a exploração, depois tem uns 20 anos para retirar o mais rapidamente o petróleo. No caso, a urgência urgentíssima do Congresso Nacional era de que tinha urgência para fazer fundos sociais. Essa é a maior falácia que eu já vi na minha vida. A Petrobras tem dois, três anos para fazer a exploração; depois dois, três anos para começar a botar as plataformas, é 2016-17. Daí a três anos vai começar a produzir o óleo-custo, estamos em 2020. Aí ela pagou todos os custos, a partir daí o óleo-lucro é dividido entre o governo e a empresa. Aí vai para o fundo no exterior. Em 2022, talvez, vai começar a mandar dividendos para cá. E tinha urgência urgentíssima para mandar dividendos do fundo social, que vai investir preferencialmente em ativos no exterior. Está na lei. Não há nenhum ativo no mundo que vai ter mais rentabilidade do que o petróleo certificado debaixo da terra. Qual moeda? O derretido dólar? O derretido euro? O yuan? O yen? Eu faço essa pergunta desde 2007. Entro no Congresso Nacional, “Vocês querem investir em quê?” Em petróleo na Arábia Saudita, talvez fosse melhor, se eles deixarem. Só que não tem onde comprar petróleo. Maluquice. Então minha proposta para o Pré-Sal é muito simples: que se delimitem as reservas; que se defina um plano nacional de desenvolvimento econômico e social: quanto para a educação, todo ano um orçamento, tipo R$ 100 bilhões a R$ 200 bilhões por ano, para a educação, para a saúde pública, para a reforma urbana, reforma agrária, proteção ambiental, infraestrutura em geral, ciência e tecnologia e, acima de tudo, transição energética. Muito investimento em tecnologia para apropriar as formas renováveis. Com essa agenda, você define qual o orçamento de médio e longo prazo e aí ordena o ritmo de produção com alguma folga para atender a isso. E vai acumulando no fundo só o do orçamento do ano seguinte. É uma loucura arrancar debaixo do seio do oceano brasileiro todo o petróleo, convertê-lo em moeda, para submeter à lógica do capital financeiro internacional. É o que todo mundo quer, porque todo mundo ganha com isso. Ganha o empreiteiro que faz a plataforma, a empresa que opera, ganham os bancos, ganham os políticos. Imagine um fundo lá fora de US$ 1 trilhão na hora de uma crise política, que maná. Defendo o seguinte: deixa o petróleo lá, como reserva de valor, produz o necessário para financiar a transformação da base social e produtiva do Brasil, só. E ambiental. Não arranca de lá mais do que isso. Se nós temos isso, podemos abrir espaço para as outras fontes de energia: solar, fotovoltaica, eólica, tudo mais. Isso pode ser feito. E a Petrobras está pronta para fazer — claro que tem que reformar a Petrobras. Na minha opinião tudo isso vale também para a Vale do Rio Doce. Tem que se apropriar do excedente econômico da indústria mineral. Nós fizemos um plano estratégico na Petrobras, algumas ações, inclusive tomar a decisão de investir em exploração para chegar ao Pré-Sal, e me orgulho de ter participado disso. De investir fortemente em exploração, porque lá, um bom marxista sabe disso, lá está o excedente econômico, o lucro suplementar. Na exploração. Na renda do petróleo. Não está nas outras indústrias: refino, petroquímica, tudo é capitalismo convencional concorrencial, onde o retorno médio é o retorno médio da acumulação do capital apenas. Se tivéssemos feito o que queriam muitos, teríamos só construído coisas por aí, feito termoelétrica, que nem o Fernando Henrique fez, e algumas refinarias, para atender os lobbies. Só que a Petrobras opera como empresa capitalista, e quanto mais ela está sendo loteada entre os grupos da base do governo, ela passa a ser um capitalismo meio estranho, que de um lado atende à pressão dos lobbies, e do outro tende a maximizar a acumulação. Só. Ela tem que mudar, como a Vale tem que mudar. Revista Adusp. A Vale continua privada. ILDO. Mas isso é muito simples, eu já escrevi sobre isso. O capital dela é majoritariamente público ou para-público. Revista Adusp. Via fundos? ILDO. Fundos de pensão. Estatiza os fundos de pensão. Toda vez que os fundos de pensão têm prejuízo, são as estatais públicas que pagam, porque a Secretaria de Previdência Privada é obrigada a supervisionar… Revista Adusp. A Petrobras controla o Petros, por exemplo? ILDO. Sim. Revista Adusp. Diretamente? ILDO. Quem controla é o governo. Então a Petros, todos eles, são um instrumento paralelo de governo, privado. O governo faz o que quer, porque não presta contas a ninguém. Eu prefiro que estatize os fundos. Por isso a Vale será estatal, a Petrobras será mais uns 15% estatal. Revista Adusp. Estatiza formalmente então? ILDO. Formalmente. Faz uma lei decretando que os mutuários do fundo têm os direitos que estão no estatuto garantidos pelo governo federal. É melhor do que ter essas gestões privadas ditas de parceria, onde os trabalhadores não opinam e os governos impõem uma agenda de rapinagem, obrigam a comprar títulos que interessam aos parceiros. Isso foi profundamente feito no governo do Fernando Henrique e continua sendo feito hoje, no governo Dilma. Então prefiro que estatize. Escrevi isso para os engenheiros. Revista Adusp.Você ficou até 2008 na Petrobras? ILDO. Saí de lá 24 de setembro de 2007, um pouco antes desse último leilão. Eu reclamava muito internamente. Mandei oito cartas ao governo Lula, criticando a política do setor elétrico, propus uma reforma na direção do que nós falamos no começo, já em 2005-6 eu fiz isso. Fiquei esperando, o troço não mudava, então resolvi escrever. Fui a público, dei entrevistas ao Valor Econômico criticando a postura do governo nessa área. Eu não falava em petróleo publicamente, mas agíamos com o MST, os sindicatos de petroleiros, todos os deputados amigos nossos, eles iam lá. Eu ia pressioná-los, eles iam lá reclamar, não tinha eco. Porque o Lula só acreditava, gostava de acreditar no que a Dilma fazia. A Dilma gostava de fazer o que o Lula pedia. Ela praticava estratégia que eu considero de assédio moral contra os subordinados, em todas as linhas, os funcionários de governo, todos os ministérios e das estatais. Ela impunha uma estratégia de ataque, de grosseria, então cada um faz o que ela quer. Ela sempre mandava os outros fazerem esses negócios, de vender energia no mercado livre, de organizar essas coisas. Usava desse poder de quem está em cima para mandar fazer e, ao mesmo tempo, do outro lado, ela era vista com extrema simpatia. Tinha uns arroubos com os privados, mas em geral estendia tapetes. Era essa estratégia que o Lula via, por isso ela virou candidata dele. O Lula se revelou ser aquilo que o Coggiola [professor Osvaldo Coggiola, da FFLCH] tinha antecipado no prefácio do livro O filho do Brasil. E o Florestan Fernandes também tinha antecipado. A precária formação política, muito superficial, e valores extremamente conservadores. Eu só li o prefácio depois que voltei. Encontrei o Coggiola, fui ler o prefácio. E o Lula me deu o livro, portanto eu não devia reclamar dele. Cada um tinha um Lula, achava que o Lula era um paradigma da transformação — e ele era o que era, capitalista, conservador. E surpreendentemente para mim, ele queria chegar lá. Queria se converter num Pelé da política, para deixar o Palocci virar o Pelé da economia, e assim todo mundo ter salário de Pelé. José Dirceu e Eike Batista contestam professor Além da presidenta Dilma Rousseff e do ex-presidente Lula, também o Ministério das Minas e Energia e a ANEEL deixaram de se manifestar a respeito das declarações do professor Ildo Sauer. Contudo, o ex-ministro José Dirceu e a empresa OGX, de Eike Batista, procurados pela Revista Adusp, encaminharam textos em que contestam as acusações formuladas pelo diretor do IEE-USP. O ex-ministro José Dirceu sustenta jamais ter feito “uso de influência política” para desenvolver seu trabalho e nega que tenha participado do leilão citado ou nele representado os interesses da OGX: “É no mínimo equivocada a hipótese de que profissionais desligados do serviço público ou de empresas estatais não possam retomar suas atividades na iniciativa privada. Pensar desta forma é banir do mercado de trabalho quem dedicou uma parcela de sua vida à construção de um país melhor. Cabe a cada profissional que cruza esta fronteira manter-se alinhado aos mais elevados padrões éticos”, diz. “Desde 2005, quando deixei o governo, me dedico às atividades de advogado e consultor e jamais fiz uso de influência política para desenvolver o meu trabalho. Não tive nenhuma participação no leilão citado e não representei os interesses da OGX. Por determinações contratuais — comuns à advocacia e à consultoria — não posso tornar público quem são os meus clientes.” “Insinuações” A OGX, empresa pertencente ao Grupo EBX, repudia “toda e qualquer acusação de que tenha recebido favorecimento na aquisição de suas concessões na 9ª Rodada de Licitações da ANP”. Acrescenta que tais “insinuações” refletem desconhecimento da legislação que rege o setor do petróleo, e considera completamente equivocada a informação de que o empresário Eike Batista tenha “surgido do nada” há apenas três anos. “Neste leilão, aberto e transparente, do qual os blocos do Pré-Sal foram retirados por decisão do CNPE, a empresa desembolsou R$ 1,4 bilhão pelos direitos de exploração em águas brasileiras, o maior valor já pago por uma empresa privada nos leilões promovidos pela ANP. Nunca uma empresa privada ousou assumir tantos riscos na indústria do petróleo no Brasil como a OGX”, declara. “Não são verdadeiras as insinuações de que a empresa teria tido acesso a informações privilegiadas. Todos os dados referentes aos blocos ofertados no leilão foram tornados públicos pela ANP na ocasião, garantindo isonomia no acesso às informações técnicas a todas as empresas interessadas”. Ainda segundo a OGX, “o processo de geração de riqueza por parte do Grupo EBX e de seu empreendedor Eike Batista foi iniciado na década de 80, com as atividades de comércio e exploração de ouro e diamantes” e a entrada em atividade de oito minas de ouro no Brasil e no Canadá e uma mina de prata no Chile. “A partir de 2004, o grupo voltou seu foco para o setor de recursos naturais e infraestrutura e abriu o capital de cinco empresas. O Grupo EBX, que já produz minério de ferro em Minas Gerais e no Mato Grosso do Sul, está investindo US$ 15,5 bilhões entre 2011 e 2012, nos setores de petróleo, logística, energia, mineração e indústria offshore no País”. Leia também: Celio Bermann: Belo Monte serve a Sarney e às mineradoras Fátima Oliveira: Governo Dilma submete corpo das brasileiras ao Vaticano Fausto Pereira: Nem toda gestante será cadastrada A triste despedida do trema

Alerta Total: Joaquim Barbosa, Dilma, Ildo Sauer e Eike Batista:...

Alerta Total: Joaquim Barbosa, Dilma, Ildo Sauer e Eike Batista:...: Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net Por João Vinhosa Em 20 de setembro de 2012, na sessão do Supremo Tribunal Federal que julg...

Joaquim Barbosa, Dilma, Ildo Sauer e Eike Batista: as maracutais no setor energético do governo Lula



Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por João Vinhosa

Em 20 de setembro de 2012, na sessão do Supremo Tribunal Federal que julgava o Mensalão, o ministro Joaquim Barbosa citou o fato de Dilma ter se manifestado “surpresa” pela rapidez com que o Congresso aprovou duas medidas provisórias que criavam um marco regulatório para o setor energético.

Referida manifestação havia acontecido em depoimento prestado por Dilma no ano de 2009, na condição de testemunha do processo. A aprovação das duas medidas pelo Congresso havia ocorrido entre 2003 e 2004.

No dia seguinte, Dilma divulgou nota com o objetivo de esclarecer o uso do termo “surpresa”, destacado por Barbosa. Na nota, Dilma aproveitou para criticar o apagão elétrico do governo FHC, e declarou que sua “surpresa” deveu-se ao fato de “termos conseguido uma rápida aprovação por parte de todas as forças políticas, que compreenderam a gravidade do tema. Como disse no meu depoimento, em função do funcionamento equivocado do setor até então, ou se reformava ou o setor quebrava.”

A propósito do funcionamento equivocado do setor energético é difícil avaliar o que é mais impressionante: as acusações feitas pelo professor Ildo Sauer – diretor de Gás e Energia da Petrobras durante cinco anos (todo o primeiro governo Lula e parte de 2007) – ou o comprometedor silêncio das autoridades por ele citadas.

Tal silêncio é tão constrangedor que leva a crer que as categóricas acusações de Sauer têm o poder de provocar um “apagão mental” nas autoridades citadas, emudecendo-as.

Relativamente às acusações do renomado conhecedor da área energética, devem ser destacadas as contidas em duas entrevistas cujos links se encontram ao final do presente artigo: a entrevista concedida à Revista Adusp, da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo em outubro de 2011, e a recente entrevista dada ao programa “Brasil em discussão”, da Record News, em 23 de setembro de 2012, apresentado por Herodoto Barbeiro.

No programa, uma recomendação de Ildo Sauer que mereceria uma atenção especial do Ministério Público Federal e do futuro presidente do Supremo Tribunal Federal. Recomendou Sauer: “Demandaria uma investigação da Polícia ou do Ministério Público para saber se há ilícitos. Mas, politicamente, eu entendo que houve um problema gravíssimo de responsabilidade do então presidente da República e da sua czar da energia, a atual presidenta da República”.
O que Ildo Sauer falou

”Estamos colhendo os frutos daquilo que não foi feito quando era a hora, em 2003-4. Muito embora a pessoa que capitaneou esta linha, que levou o governo por este caminho, evidentemente foi muito bem premiada: foi conduzida à Presidência da República.”

“A gestão do sistema elétrico brasileiro tem sido altamente deficiente, ineficiente. Nós temos recursos, falta organização, falta gestão. Isso é que levou a essa explosão tarifária que agora está sendo corrigida. A presidenta está corrigindo a ministra, ainda que seja a mesma pessoa”

“O Lula foi avisado em 2006, e a Dilma também, de que agora um novo modelo geológico (Pré-Sal) havia sido descoberto, cuja dimensão era gigantesca.”

“O ato mais entreguista da história foi o leilão de petróleo para Eike.”

“(Eike) formou a empresa em julho de 2007, obteve as concessões em novembro; e, em julho de 2008, fez a Initial Public Offering e a empresa já valia US$ 10 bilhões.”

“Em lugar nenhum do mundo, uma empresa formada em julho seria capaz de pagar um bilhão e meio de reais para comprar direitos de exploração em novembro.”

“Tudo que ele tinha de ativo: a equipe recrutada da Petrobras e os blocos generosamente leiloados por Lula e Dilma. Só isso.”

“O que caberia a um governo que primasse por um mínimo de dignidade para preservar o interesse público? Cancelar o leilão e processar esses caras que saíram da Petrobras com segredos estratégicos. Por que não foi feito? Porque tanto Lula, quanto Dilma, quanto os ex-ministros, os dois do governo anterior e um do governo Lula, estavam nessa empreitada.”

“Eu acho que quem errou profundamente foi o presidente da República e a ministra da Casa Civil, que comandava a política energética, que era responsável pela energia. Sabendo o que aconteceu, em nome do interesse estratégico do país, não poderia ter feito o leilão de 2007”

“A concretização do eventual benefício se deu com a manutenção do leilão, e essa decisão foi do presidente da República e da então ministra da Casa Civil, hoje presidenta da República.”

“Demandaria uma investigação da Polícia ou do Ministério Público para saber se há ilícitos. Mas, politicamente, eu entendo que houve um problema gravíssimo de responsabilidade do então presidente da República e da sua czar da energia, a atual presidenta da República”

“Os números anunciados para a Refinaria de Pernambuco, de que ela estaria custando cerca de 20 bilhões de dólares são absolutamente assustadores. No nível de investimento normal, uma refinaria da complexidade daquela de Pernambuco terá de ter investimento máximo da ordem de 7 a 8 bilhões de dólares. A metade dela agora já custa mais que uma inteira. Acho que a Venezuela, com razão, não vai querer entrar nisso.”

“Acho que é uma situação bastante delicada, que merece uma investigação, se não uma auditoria internacional para avaliar exatamente o que deu errado.”

O que Ildo Sauer não falou

Apesar de ter sido o diretor de Gás e Energia da Petrobras de janeiro de 2003 a setembro de 2007, Ildo Sauer não falou nada sobre a Gemini – sociedade por meio da qual o cartório de produção e comercialização de gás natural liquefeito (GNL) foi entregue a uma empresa privada, cujo nome eu estou judicialmente impedido de falar.

Citada sociedade – arquitetada no período em que Dilma Rousseff era a titular do Ministério de Minas e Energia (MME) e presidente do Conselho de Administração da Petrobras, e Erenice Guerra era a chefe da área jurídica do MME – só teve sua constituição autorizada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) em meados de 2006.

Considerando a exigüidade do tempo entre a entrada em operação da Gemini e a saída de Sauer da diretoria da Petrobras, é natural que ele desconheça as graves acusações feitas contra essa espúria sociedade. Soma-se a isso, outro fato: durante o período em que ele ainda era diretor, tais acusações se limitavam à idoneidade da sócia da Petrobras. As denúncias de maior gravidade vieram após sua saída.

Contudo, diante da vigorosa defesa do interesse nacional demonstrada por esse respeitável professor, não posso me furtar de apresentar a ele os fatos que tenho denunciado sobre a Gemini.

Assim, coloco à disposição do professor Sauer, para conhecimento e eventual análise, os inúmeros documentos que embasaram minhas denúncias, todas elas disponíveis nos arquivos do Alerta Total (www.alertatotal.net).

Por oportuno, apresento ao final o link do artigo “Dilma foi caluniada no escândalo Gemini?”, do qual segue um breve resumo.

Em 19 de outubro de 2010, formulei denúncia ao Ministério Público Federal (MPF) sobre a prática de tráfico de influência no caso da Gemini, originando uma Peça de Informação que foi arquivada.

Diante dos termos do Ofício por meio do qual o Procurador da República Paulo Roberto Galvão de Carvalho me comunicou tal arquivamento, fica parecendo que eu pratiquei o crime de calúnia contra a presidenta Dilma Rousseff.

De tal Ofício, transcrevo: “A alegação de tráfico de influência praticado pela então Ministra das Minas e Energia, Dilma Rousseff, foi mera ilação (...) Quanto ao suposto tráfico de influência, deve-se dizer que não há um mínimo de lastro probatório para dar suporte a tese de que a Presidenta da República Dilma Rousseff, então Ministra das Minas e Energia e Presidenta do Conselho de Administração da Petrobras, tenha praticado atos ilícitos”.

Naturalmente, eu imaginava que o MPF fosse encaminhar tal Peça de Informação à presidenta Dilma para que ela, em defesa de sua honra, pudesse tomar a única decisão cabível neste caso: processar-me judicialmente. Porém, tal fato não ocorreu, e eu perdi a oportunidade de comprovar minhas denúncias perante a Justiça, e pulverizar, de maneira arrasadora, as equivocadas interpretações do MPF.

Para finalizar, apresento, a seguir, os links mencionados

http://www.adusp.org.br/files/revistas/51/r51a01.pdf

http://noticias.r7.com/record-news/2012/09/24/brasil-em-discussao-17/

http://www.alertatotal.net/2011/11/dilma-foi-caluniada-no-escandalo-gemini.html

João Vinhosa é Engenheiro - joaovinhosa@hotmail.com

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

ASSUNTO: Reexame do Parecer CNE/CEB nº 9/2012, que trata da implantação da Lei nº 11.738/2008, que institui o piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da Educação Básica.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO SUJEITO A HOMOLOGAÇÃO DO MINISTRO DA EDUCAÇÃO INTERESSADO: Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica UF: DF ASSUNTO: Reexame do Parecer CNE/CEB nº 9/2012, que trata da implantação da Lei nº 11.738/2008, que institui o piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da Educação Básica. RELATORA: Maria Izabel Azevedo Noronha PROCESSO Nº: 23001.000050/2012-24 PARECER CNE/CEB Nº:18/2012 COLEGIADO: APROVADO EM:2/10/2012 I – Relatório Apresentação No uso de suas atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao Ministro de Estado da Educação e do seu papel de formular e avaliar a política nacional de educação, zelar pela qualidade do ensino, velar pelo cumprimento da legislação educacional e assegurar a participação da sociedade no aprimoramento da educação brasileira, o Conselho Nacional de Educação vem se debruçando sobre todas as questões que afetam a situação dos profissionais do setor. Considerando as transformações que hoje ocorrem na educação nacional, das quais o Conselho Nacional de Educação (CNE) é também ator, foi nomeada, no âmbito da Câmara de Educação Básica (CEB) uma Comissão Especial destinada a estudar as diretrizes e normas vigentes, debatê-las e propor adequações ao novo ordenamento legal sobre a carreira dos profissionais da Educação Básica. Esta comissão é composta pelos conselheiros Raimundo Moacir Mendes Feitosa, presidente, Maria Izabel Azevedo Noronha, relatora, e Luiz Roberto Alves, membro. Hoje, em razão da importância da temática que estuda, tal comissão tornou-se uma das comissões permanentes da Câmara de Educação Básica. Nesta condição, propomos o presente Parecer que, com base na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), estuda a concepção e implantação da Lei nº 11.738/2008, a partir da apresentação ao Conselho Nacional de Educação de um conjunto de reflexões sobre o tema, das quais parte está contida neste texto. Ressalte-se que, antes que se tornasse parecer, o texto base deste trabalho ficou disponível para consultas por 30 dias no site do Conselho Nacional de Educação. No contexto deste trabalho, o CNE exarou três importantes Resoluções. Duas delas tratam, respectivamente, das Diretrizes Nacionais para os Planos de Carreira dos Profissionais do Magistério da Educação Básica Pública (Parecer CNE/CEB nº 9/2009 e Resolução CNE/CEB nº 2/2009) e das Diretrizes Nacionais para os Planos de Carreira e Remuneração dos Funcionários da Educação Básica Pública (Parecer CNE/CEB nº 9/2010 e Resolução CNE/CEB nº 5/2010). A terceira define Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica (Parecer CNE/CEB nº 7/2010 e Resolução CNE/CEB nº 4/2010.) O Parecer CNE/CEB nº 9/2009, enfatiza que a valorização profissional se dá na articulação de três elementos constitutivos: carreira, jornada e piso salarial. Esse entendimento tem por objetivo garantir a educação como direito inalienável de todas as crianças, jovens e adultos, universalizando o acesso e a permanência com efetiva aprendizagem na escola. Caracteriza um grande desafio para a educação brasileira a tão almejada qualidade social da educação (Parecer CNE/CEB nº 7/2010). O parecer que ora apresentamos não pretende esgotar as questões relacionadas à lei do piso salarial, mas tem um significado especial para os trabalhadores em educação, tendo em vista a afirmação da necessidade de sua valorização profissional e do reconhecimento de seu papel fundamental no processo educativo. Nossa expectativa é a de que este trabalho possa ser referência e objeto de consulta para os atuais e futuros professores e profissionais do magistério, que precisam de respostas para questões que vem sendo formuladas em seguidas consultas a esta relatora e que poderão ser formuladas em futuras demandas. Submetido ao debate e escrutínio da Câmara de Educação Básica (CEB) do CNE, foi o presente Parecer aprovado pela unanimidade dos Conselheiros e, posteriormente, remetido no prazo legal ao Excelentíssimo Senhor Ministro da Educação para homologação. Entretanto, o Parecer e a Resolução dele decorrente receberam, num primeiro momento, propostas por escrito de alterações da parte da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e, também, do Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação (CONSED). Frente a essas manifestações, realizou-se no dia 8 de agosto de 2012, no auditório Cecília Meireles, na sede do Conselho Nacional de Educação, em Brasília, reunião da Câmara de Educação Básica com a presença, além dos Conselheiros, de mais 30 pessoas, de oito estados, na qual foram apresentadas as propostas da CNTE e do CONSED, já conhecidas, e, verbalmente, as proposições da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), tendo sido entregue ao CNE, na ocasião, documento contendo essas propostas. Como encaminhamento, ficou definida a realização, em 21 de agosto de 2012, em Brasília, uma reunião de entendimento, com a presença de representantes do CNE, da CNTE, do CONSED, da UNDIME e, também, do MEC, na qual se analisariam e se debateriam as propostas apresentadas. Nessa reunião, compareceram as citadas entidades e processou-se o debate e incorporação das propostas de alteração contidas no texto do Parecer, revisado por esta relatora. A delegação do CONSED, por meio de sua presidente, Maria Nilene Badeca da Costa, leu um documento que já havia sido analisado anteriormente. Na sequência, esta relatora declarou haver realizado mudanças no texto que iam ao encontro das propostas apresentadas pelo CONSED. Ao mesmo tempo, a presidente da UNDIME, Cleuza Repulho, também presente, declarou que sua entidade sentia-se totalmente contemplada pelas alterações propostas pela relatora deste Parecer. Frente a isto, a delegação do CONSED refletiu acerca das considerações feitas, propondo que o documento a ser examinado e votado em ocasião oportuna pelo Conselho Nacional de Educação se limitasse ao Parecer e não contivesse uma Resolução. Para além das alterações já propostas no texto, a comissão propôs, também, que a tabela anexa, contendo a composição das horas da jornada de trabalho, de acordo com a Lei 11.738/2008, fosse incorporada ao texto do Parecer, o que foi aceito por todos. Registre-se que todo esse processo foi mediado pelo conselheiro e presidente da CEB e da Comissão, Raimundo Moacir Mendes Feitosa. Ao final do encontro, ficou definida uma nova reunião de entendimento para fechar o texto final do Parecer, com a presença de representantes da CNTE, do CONSED, da UNDIME e do MEC. A comissão prontificou-se a encaminhar nova versão do Parecer para análise de todos os envolvidos. Nova reunião realizou-se em 25 de setembro de 2012, com a presença de representantes da Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino (SASE/MEC), da CNTE, do CONSED, da UNDIME e do Fórum dos Conselhos Estaduais de Educação, conforme lista de presença anexada ao processo. Feita a leitura do Parecer, verificou-se que o texto com a incorporação das contribuições advindas da reunião realizada em 21 de agosto de 2012, estava de acordo com as alterações propostas por todas as entidades presentes. Este Parecer expressa o riquíssimo debate ocorrido que, a partir das diferenças iniciais e pontuais, gerou um consenso em torno da aplicabilidade da composição da jornada de trabalho dos professores, prevista na Lei nº 11.738/2008. Regime de colaboração O Brasil vive um momento rico de elaboração e implementação de suas políticas educacionais. A Conferência Nacional de Educação (CONAE), realizada em março e abril de 2010 em Brasília, foi um momento ímpar neste processo de elaboração das políticas educacionais. Articulando a participação da sociedade civil organizada, autoridades e gestores educacionais, entidades representativas dos profissionais da Educação e dos estudantes, entidades sindicais e populares e representativas de pais, mães ou responsáveis pelos estudantes, a CONAE deliberou e consolidou, no seu documento final, diretrizes e metas a partir de um tema central: Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação: O Plano Nacional de Educação, diretrizes e estratégias de ação. Concretizada por meio de uma ampla mobilização desde as escolas e instituições educacionais, passando por atividades locais e conferências municipais, intermunicipais e estaduais, a CONAE se constituiu em espaço social de discussão da educação brasileira, definindo caminhos para a construção de um projeto nacional de educação e de uma política de Estado para a Educação, que se concretizará no Plano Nacional de Educação (PNE), ora em tramitação no Congresso Nacional. Antes da CONAE, realizou-se, em 2008, a Conferência Nacional de Educação Básica (CONEB), igualmente estruturada a partir de atividades locais e regionais, conferências municipais, intermunicipais, estaduais, culminando com a Conferência Nacional. A exemplo da CONAE, a CONEB discutiu, deliberou e consolidou propostas para a estruturação mais igualitária da educação nacional. Neste contexto, diversas iniciativas legislativas e normativas no âmbito do Estado, bem como iniciativas da sociedade civil organizada, buscam a garantia da autonomia administrativa de Estados e Municípios, reafirmando o pacto federativo, base da Constituição Federal. Assim, estas iniciativas apontam para a concretização do regime de colaboração entre os entes federados, conforme preveem a Constituição Federal e a Lei nº 9.394/96 (LDB): A Constituição Federal dispõe que: Art. 211 A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino. Art. 241 A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos. A LDB determina: Art. 8º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de colaboração, os respectivos sistemas de ensino. § 1º Caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais. § 2º Os sistemas de ensino terão liberdade de organização nos termos desta Lei. A própria CONAE teve como seu eixo central a construção do Sistema Nacional Articulado de Educação, que se concretiza por meio do regime de colaboração. Da mesma forma, a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), por meio da Lei nº 11.494/2007, e a instituição da Emenda Constitucional nº 59/2009 (à qual doravante nos referiremos simplesmente como EC 59, denominação que já foi assimilada pelos profissionais da educação) como medidas estruturantes da Educação Básica, dizem respeito ao regime de colaboração e apontam para o sistema nacional de educação. Resultado das lutas e mobilizações dos profissionais da educação e outros setores e movimentos sociais, combinadas com a sensibilidade e disposição para o diálogo do Governo Federal, o FUNDEB incorpora a concepção de Educação Básica como processo contínuo e articulado, desde a Educação Infantil até o Ensino Médio, incluindo todos os níveis e modalidades (abarcando, portanto, todos os entes federados) e assegurando seu financiamento. A EC 59 permitiu a alocação de mais recursos para a educação, ao extinguir a Desvinculação das Receitas da União (DRU) para o setor; estabelece que o ensino será obrigatório e gratuito para a população de 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade (medida a ser implementada em todos os sistemas até 2016) e exige que lei federal estabeleça o Sistema Nacional de Educação com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração entre os entes federados. Também contribui para a concretização do regime de colaboração entre os entes federados a instituição da Prova Nacional de Concurso para Ingresso na Carreira Docente, sob responsabilidade do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP/MEC), por adesão. O objetivo do exame é ajudar Estados e Municípios na seleção de professores para trabalhar nas redes públicas. O professor interessado participa da prova e, de posse da nota, poderá ser selecionado para trabalhar nas redes de ensino dos Estados e municípios que aderirem à proposta. Ressalte-se que o advento do FUNDEB possibilitou à União e aos entes federativos, por meio de um regime de colaboração, implementar políticas públicas no sentido de focar a garantia dos direitos almejados pelo art. 206, I e VII, combinado com o art. 3º, III, da Carta Magna, bem como de estabelecer o piso do magistério com vistas a valorizar a maior parte dos profissionais da educação em exercício nas unidades escolares. As Diretrizes Nacionais para os Planos de Carreira do Magistério da Educação Básica Pública (Resolução CNE/CEB nº 2/2009) também contém uma série de dispositivos que, ao mesmo tempo, pressupõem e articulam medidas de colaboração entre os entes federados em relação à valorização dos profissionais da educação. Estas medidas devem conter, por exemplo, conforme possibilita o artigo 241 da Constituição Federal, já explicitado na Res. CNE/CEB nº 2/2009, em seu artigo 4º, inciso XIII e artigo 5º, inciso XXII, a remoção e o aproveitamento dos professores quando da mudança de residência e da existência de vagas nas redes ou sistemas de destino, sem prejuízo para os direitos dos servidores do respectivo quadro funcional. Da mesma forma, como preveem o parágrafo único do artigo 11 da Lei nº 9.394/96 e o artigo 23 da Constituição Federal, os entes federados, através de legislação própria, poderão prever a recepção de profissionais do magistério de outros entes federados por permuta ou cessão temporária, havendo interesse das partes e coincidência de cargos, no caso de mudança de residência do profissional e existência de vagas, na forma de regulamentação específica de cada rede ou sistema de ensino, inclusive para fins de intercâmbio entre os diversos sistemas, como forma de propiciar ao profissional da educação sua vivência com outras realidades laborais, como uma das formas de aprimoramento profissional. Medidas como as que nos referimos nos parágrafos anteriores, são absolutamente factíveis e possibilitam, sem grandes dificuldades, salvo a formulação de convênios e elaboração de leis locais, além de suprir a carência de professores, a oxigenação dos sistemas de ensino pela troca de experiências e metodologias que poderá haver. É um mecanismo muito rico que, acreditamos, pode ser experimentado com ótimos resultados. É preciso ter em conta, como este Conselho Nacional de Educação já expressou no Parecer CNE/CEB nº 9/2009 (Diretrizes Nacionais para os Novos Planos de Carreira do Magistério da Educação Básica Pública), que todas as medidas relacionadas à contratação e regime de trabalho de professores e demais servidores públicos, devem obrigatoriamente responder ao princípio da legalidade, inscrito no artigo 37, caput, da Constituição Federal: Art. 37 - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) A principal diretriz que passa ao administrador o comando contido no caput do artigo 37 é a de que, ao contrário do que acontece com os particulares, a administração pública não é livre para tratar dos seus interesses, porque há rígidos princípios que ela é obrigada a seguir. O principal destes princípios é o da legalidade, que, em poucas palavras, é o princípio que afirma que a Administração, quando deseja qualquer ação ou omissão, só pode concretizar sua vontade se há lei que, expressamente, comande a ação ou omissão desejada. Este princípio, igualmente, vale quando o assunto que a administração resolve abordar são os servidores públicos. Se a administração deseja servidores públicos, deve haver lei que expresse esta necessidade. Se quiser pagar servidores públicos, majorar-lhe os vencimentos, acrescentar gratificações, estruturar uma carreira, haverá de existir lei que comande todos estes desejos. Lei, no stricto sensu, é a norma que passa pelo processo de discussão no Poder Legislativo, independentemente da origem do projeto de lei (que pode ter origem no Poder Executivo, no Legislativo ou no Judiciário, além daqueles projetos de lei que têm origem com a iniciativa popular). O único instrumento legislativo que pode criar, modificar ou extinguir direitos é a lei. Decretos, Portarias, Resoluções, Instruções e afins são também normas, cuja função é diferente da lei. Enquanto a lei diz o direito, as demais normas regulamentam o direito dito pela lei, sem, no entanto, modificar, extinguir ou criar direitos. Assim, viu-se que é a lei no seu sentido estrito, que comanda a administração pública. É também verdade que a lei é um ente normativo que não está desvinculado de um sistema legal estruturado. Esta estruturação cria hierarquia entre as normas. Há determinado período do ano em que as redes e os sistemas oficiais de ensino sofrem, porque há o entendimento de que não se podem admitir professores nos anos eleitorais durante o período de três meses que antecedem o pleito eleitoral e até a posse dos eleitos, nos termos do artigo 73, V da Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997. Ocorre que, no caso, há dois comandos que se contradizem. Um, o constitucional, que afirma que a educação é imprescindível. O outro, o legal, que apregoa a impossibilidade de admissão de funcionários, portanto, professores, no período anterior às eleições, bem como alterações na carreira dos profissionais da educação que impliquem em alterações salariais. Na hierarquia estabelecida no nosso sistema legal, o maior comando é o comando constitucional, assim, fica consignada uma base jurídica para os casos em que haja necessidade inadiável de admissão de professores e medidas correlatas, ainda que em período que se enquadre naquele descrito no inciso V, art. 73, da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, e nas disposições da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000). Ressalvo, no entanto, que os dispositivos legais e constitucionais elencados não permitem que sejam majorados vencimentos de servidores públicos no período que vai dos três meses anteriores ao pleito eleitoral até a posse dos eleitos porque, para esta situação, não há resguardo constitucional que possa ser invocado para atenuar os efeitos da Lei nº 9.504/97 e Lei Complementar nº 101/2000. É no contexto da busca da valorização profissional do magistério e do aprimoramento da qualidade da educação que surge a Lei nº 11.738/2008, que regulamenta a alínea “e” do inciso III do caput do art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, estabelecendo normas unificadas para o salário base de todos os professores, em todos os entes federados, bem como uma regra única para a composição da jornada de trabalho docente em todo o país. A Lei nº 11.738/2008 O piso salarial profissional nacional é uma luta histórica dos educadores brasileiros. A primeira referência a um piso salarial nacional data de 1822, registrada em portaria imperial. O piso chegou a ser promulgado em 1827, mas não foi implementado. Nesses quase dois séculos a luta pelo piso salarial nacional do magistério nunca cessou. A Lei nº 11.738/2008 é estruturada em poucos artigos, fixando o piso salarial nacional dos professores, afirmando que este piso é pago por determinada jornada e disciplinando como se compõe esta mesma jornada. A definição do que é o piso salarial nacional está contida no § 1º do art. 2º da referida lei, assim redigido: Art. 2º (...) § 1º O piso salarial profissional nacional é o valor abaixo do qual a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não poderão fixar o vencimento inicial das Carreiras do magistério público da Educação Básica, para a jornada de, no máximo, 40 (quarenta) horas semanais. Continuando, a mesma lei mais adiante (§ 4º do mesmo art. 2º) trata da composição da jornada de trabalho: Art. 2º (...) § 4º Na composição da jornada de trabalho, observar-se-á o limite de 2/3 (dois terços) da carga horária para o desempenho das atividades de interação com os educandos. Logo, quando se afirma que vai se pagar certa quantia por determinado trabalho, há que se explicitar qual é a quantia e qual é o trabalho. O trabalho é tanto a quantidade de horas que se trabalha como é também a descrição dessas mesmas horas, ou seja, de como elas se dividem, dentro ou fora da sala de aula. Não há sentido e nem possibilidade lógica em se afirmar que será pago determinado valor a um profissional sem que se diga a que se refere este valor. O que a lei afirmou é que o piso salarial nacional é igual a R$ 950,00 mensais (valor da época da publicação da lei), pago como vencimento (ou seja, sem que se leve em conta as gratificações e demais verbas acessórias), por uma jornada de até 40 (quarenta) horas semanais (proporcional nos demais casos), sendo que essa jornada deve ser cumprida de modo que, no máximo, 2/3 (dois terços) sejam exercidos em atividades onde há interação com os estudantes. A lei também definiu que este valor dever ser atualizado anualmente utilizando-se o mesmo percentual de crescimento do valor anual mínimo por aluno referente aos anos iniciais do ensino fundamental urbano, definido nacionalmente, nos termos da Lei nº 11.494, de 20 de junho de 2007. Atualmente, aplicando-se esta metodologia, o valor do piso salarial profissional nacional é de R$ 1.451,00. Apesar de sua funcionalidade e de ter sido aprovada por unanimidade no Congresso Nacional, a lei foi contestada junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) impetrada pelos governadores de Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Paraná, Ceará e Santa Catarina, ainda no ano de 2008. A ação foi apoiada por outros cinco governadores, dos Estados de Roraima, São Paulo, Tocantins, Minas Gerais e Distrito Federal. Os Estados questionaram, na sua ação, o estabelecimento da jornada de no máximo 40 horas semanais de trabalho, a composição da jornada, a vinculação do piso salarial ao vencimento inicial das carreiras dos profissionais do magistério da Educação Básica pública (não se admitindo, computar-se gratificações, bônus e outros adicionais), os prazos para a implementação e a data de vigência da lei. Contestaram, na verdade, a legitimidade da União para legislar sobre tais assuntos, alegando que a fixação do regime de trabalho dos servidores estaduais e municipais, pelo pacto federativo, caberia a essas esferas do Estado e, ao mesmo tempo, argumentaram que os custos gerados pela lei representaria riscos às finanças de Estados e Municípios. Atendendo parcialmente aos governadores, em 17 de dezembro de 2008, o STF proferiu medida cautelar que suspendeu provisoriamente dois pontos fundamentais da lei: a composição da jornada de trabalho e a vinculação do piso salarial aos vencimentos iniciais das carreiras, passando a ser referência para o pagamento do piso a remuneração e não o vencimento inicial dos profissionais do magistério. Entretanto, esta ADIN já foi superada por decisão definitiva daquela Corte, em dois julgamentos consecutivos, realizados em 6 e 27 de abril de 2011. No primeiro julgamento, a decisão dos juízes foi unânime pela constitucionalidade da Lei nº 11.738/2008, no que se refere ao piso salarial. No segundo julgamento, a decisão apresentou um resultado de cinco votos a cinco para a composição da jornada de trabalho. Considerando o que diz o art. 97 da Constituição Federal, ou seja, que “somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”, ficou decidido pelo STF que a Lei nº 11.738/2008 é integralmente constitucional e deve ser aplicada por todos os entes federados. A situação de não aplicação da lei tem ensejado enfrentamentos entre os integrantes do magistério da educação pública e os governos estaduais, seja pelo valor do piso salarial, seja pela composição da jornada de trabalho. O mais recente destes movimentos, que unificou os profissionais do magistério de todo o país, foi a greve nacional coordenada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e realizada entre os dias 14 e 16 de março. Em razão desta situação e em face de diferentes interpretações e enfoques que a questão vem encontrando entre autoridades e gestores educacionais e os profissionais da educação, o Conselho Nacional de Educação, no uso de suas atribuições legais, passa a analisar o assunto por meio deste Parecer, sem pretender, evidentemente, esgotá-lo. Desenvolvimento Para que possa cumprir plenamente a sua função social, que é a de formar cidadãos e cidadãs plenamente conscientes da realidade em que vivem e em condições de contribuir para a realização das transformações de que a sociedade necessita, a escola precisa viver um processo de humanização. Neste sentido, ainda que a escola tenha uma estrutura perfeita, ela não cumprirá o papel que a sociedade dela espera se o ser humano que nela trabalha e estuda não tiver suas necessidades atendidas. Este Parecer não tem o objetivo de aprofundar-se nesta questão, mas é necessário compreender a educação em sua especificidade, qual seja, a de formar pessoas e não objetos. É nesta perspectiva que o trabalho do professor precisa ser compreendido e valorizado. Ele é o elemento mais importante do processo educativo. Seu trabalho é determinante para a qualidade da educação e contribui de forma decisiva para o desenvolvimento do país, em todas as suas dimensões. Para que a atuação do professor possa corresponder à importância deste papel social, seu trabalho precisa ser valorizado. É também nesta perspectiva que devemos considerar a importância da Lei nº 11.738/2008, tanto em termos salariais quanto em relação às condições de trabalho concretizadas na composição da jornada de trabalho que esta lei determina. Um dos grandes desafios da educação brasileira é alcançar a universalização do acesso e garantir a permanência e a conclusão com sucesso dos estudantes na escola, assegurando a qualidade em todos os níveis e modalidades da Educação Básica. No Brasil, o direito à educação está consagrado no art. 6º da Constituição Federal sob o título dos direitos e garantias fundamentais e seus princípios fundamentais estão inscritos nos arts. 205 e 206 da Carta Magna. Diz o texto constitucional: Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Art. 206 O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; V - valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006). VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei; VII - garantia de padrão de qualidade. VIII - piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006). Parágrafo único. A lei disporá sobre as categorias de trabalhadores considerados profissionais da Educação Básica e sobre a fixação de prazo para a elaboração ou adequação de seus planos de carreira, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006). Ao inscrever a educação como direito universal e subjetivo, o Brasil avançou na direção da garantia de acesso à educação e, nos últimos anos, tem avançado também na questão da qualidade de ensino, mas há ainda um longo caminho a percorrer para que alcancemos a garantia do padrão de qualidade também inscrito entre os princípios constitucionais da educação nacional. Vivemos, contudo, uma época ainda mais favorável para aprofundarmos os avanços em direção a este objetivo. Em seu discurso de posse, a Presidente Dilma Rousseff foi enfática ao declarar que somente com avanço na qualidade de ensino poderemos formar jovens preparados, de fato, para nos conduzir à sociedade da tecnologia e do conhecimento. A Presidente da República também se referiu à valorização do magistério como uma das condições para a busca desta qualidade, afirmando que só existirá ensino de qualidade se o professor e a professora forem tratados como as verdadeiras autoridades da educação, com formação continuada, remuneração adequada e sólido compromisso com a educação das crianças e jovens. O Ministro da Educação, Aloizio Mercadante, em entrevista ao portal IG, publicada no dia 6 de março de 2012, declarou: A primeira forma de valorizarmos o professor hoje é cumprir o piso. Eu reconheço que é um reajuste forte e que há dificuldades reais. Agora, nós estamos falando em pouco mais de dois salários mínimos. Se nós quisermos ter professores de qualidade no Brasil, é preciso oferecer salários atraentes. Se não, tudo o mais que estamos falando não vai acontecer a médio prazo. Além disso, há a discussão da jornada, que deve ser um objeto de ampla negociação com os professores e entidades sindicais. A hora-atividade não pode ser tratada como uma questão trabalhista, desassociada de uma dimensão pedagógica. Entretanto, como explicitar da melhor maneira o significado do termo valorizar? Como entender, em toda a sua dimensão, a valorização do profissional do magistério, dentro da especificidade e importância de sua profissão? A especificidade do trabalho educativo Podemos partir do significado usual do termo “valorização”, como nos é apresentado pelos dicionários. Assim, encontramos no Dicionário Aurélio que valorização é ato ou efeito de valorizar(-se); ter valor. O mesmo significado pode ser encontrado no Grande Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa, mas também que é a elevação de preço de uma mercadoria acima do nível que o jogo espontâneo da lei da oferta e procura lhe atribui. Para aprofundarmos nossa compreensão sobre a questão da valorização do trabalho do professor devemos levar em conta que se trata, antes de tudo, de relações de trabalho. Neste sentido, não podemos deixar de lançar mão da teoria marxista do valor, no contexto histórico do desenvolvimento do capitalismo e da existência da sociedade civil organizada em associações e sindicatos, correlacionando-a com o trabalho desenvolvido pelos servidores públicos, entre eles os professores. É preciso ter em conta o caráter diferenciado dos serviços públicos, cujo objetivo é o atendimento ao cidadão e não a produção e comercialização de mercadorias. Nesta perspectiva, o professor é considerado, nesta análise, como um trabalhador. Para Karl Marx, somente o trabalho humano produz valor. Por meio do trabalho, o homem domina e supera a natureza, construindo-se, neste processo, como ser histórico e social. Pelo trabalho, produz cultura e gera conhecimentos que serão transmitidos às sucessivas gerações por meio da educação. Outros animais também trabalham, mas apenas para satisfazer necessidades imediatas. O homem é o único ser que, para além de buscar a satisfação de suas necessidades imediatas, projeta o resultado de seu trabalho. Ele define metas e, ao alcançá-las, define novas metas, sempre em busca do supérfluo, ou seja, daquilo que transcende o necessário, inclusive a sua própria natureza. Também é o único ser que constrói e utiliza instrumentos de trabalho que ampliam sua capacidade de realizar trabalhos e produzir resultados. Assim, por meio do trabalho, o homem busca libertar-se de suas limitações naturais e, com isso, construir a sua liberdade. Por meio de seu trabalho, o homem produz objetos que são úteis para quem os usa, seja para a satisfação de necessidades inerentes à própria sobrevivência, seja para a satisfação de suas necessidades culturais e espirituais ou, ainda, a produção de novos objetos que vão satisfazer novas necessidades. Portanto, cada objeto produzido pelo homem possui, em si, um valor de uso, que é sua própria capacidade de satisfazer necessidades objetivas ou subjetivas do ser humano que o utiliza. Entretanto, no sistema capitalista, ocorre uma transmutação do produto do trabalho humano, que passa de objeto a mercadoria, ou seja, embora não perca seu valor de uso, ele passa a existir na sociedade como mercadoria, adquirindo um valor de troca, pelo qual será comercializado no mercado, regulando as relações entre os produtores e entre todas as pessoas. Ocorre que nem todos os homens possuem, no capitalismo, meios para produzir o necessário para a sua subsistência, devendo buscar no mercado a satisfação de suas necessidades. Para tanto, na medida em que as relações sociais são reguladas pela mercadoria, o homem que não detém meios para produzir deve comercializar sua própria força de trabalho, que se torna, assim, também uma mercadoria. Desse modo, o trabalhador deixa de ser detentor de sua própria força de trabalho, cedida ao capitalista em troca de determinada quantia de dinheiro, que o trabalhador utiliza para comprar os produtos que não tem meios para produzir. Nesse contexto, o trabalho, em vez de mediação para a construção da liberdade, torna-se um fim em si mesmo, aprofundando o abismo entre o homem caricaturado produzido na teia das relações sociais de produção, e o homem histórico, entendido como o homem sujeito. Assim, a mercadoria é o que move e o que promove as relações sociais, mediante a personificação das coisas e a redução das pessoas a meros instrumentos da produção. Ao comprar a força de trabalho do trabalhador, o capitalista o faz por um determinado período de tempo, que configura a jornada diária de trabalho. Entretanto, o tempo necessário para que este trabalhador produza a quantidade de mercadorias que corresponde, em valores de mercado, ao suficiente para sua subsistência e de sua família (assegurando a reprodução da força de trabalho, também ela uma mercadoria), não esgota toda a jornada de trabalho contratada pelo empregador. Ele continua trabalhando e produzindo até o final de sua jornada. Este excedente de trabalho gera mercadorias, que contém, em si, uma determinada quantidade de valor. A este valor a mais, que é apropriado pelo capitalista, Marx chamou de “mais-valia”. Como toda mercadoria, a força de trabalho é unidade de valor de uso e valor de troca. O valor de troca da força de trabalho aparece, necessariamente, na forma mistificada de “preço do trabalho”, chamado salário. Tal mistificação decorre do fato de que o salário é pago em troca da realização de uma determinada quantidade de trabalho criador de novo valor em quantidade superior ao custo da força de trabalho. A diferença entre seu custo e o valor por ela produzido, mediante o consumo capitalista do seu valor de uso, constitui a mais-valia. No sistema capitalista, entretanto, esta relação singular entre os detentores dos meios de produção e o conjunto da sociedade adquire outra dimensão, muito mais ampliada. Somente pelo “valor” das mercadorias, a atividade de trabalho dos produtores independentes separados conduz à unidade produtiva que é chamada economia social, as inter-relações e mútuos condicionamentos do trabalho de membros individuais da sociedade. Deixando de lado então o valor de uso dos corpos das mercadorias, resta a elas apenas uma propriedade, que é a de serem produtos do trabalho. Entretanto, produto do trabalho também já se transformou em nossas mãos. Se abstrairmos o seu valor de uso, abstraímos também os componentes e formas corpóreas que fazem dele valor de uso. Deixa já de ser mesa ou casa ou fio ou qualquer outra coisa útil. Todas as suas qualidades sensoriais se apagaram. Também já não é o produto do trabalho do marceneiro ou do pedreiro ou do fiandeiro ou de qualquer outro trabalho produtivo determinado. Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil dos trabalhos neles representados, e desaparecem, também, portanto, as diferentes formas concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se um do outro para reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho humano, a trabalho humano abstrato. Assim, analisando mais de perto o que acontece com o valor de uso da força de trabalho, incorporada e posta em ação como parte do capital produtivo, verificamos que o trabalho concreto, vivo, subjacente na força de trabalho desempenha, a um só tempo, nada menos do que três funções: 1) conserva, transferindo-o ao novo valor de uso que produz a parte do valor dos meios de produção utilizados e consumidos produtivamente (o “trabalho abstrato” indireto, morto, chamado “capital constante”); 2) reproduz o próprio valor na parte equivalente do valor do novo produto (capital variável); 3) produz um acréscimo de valor, chamado justamente de mais-valia. O trabalhador é alienado, despossuído do resultado de seu trabalho, que aparece nas relações sociais como mercadoria, ou seja, pelo seu valor de troca e não pelo seu valor de uso. O trabalho que produz mais-valia é o trabalho abstrato, que resulta da abstração do trabalho concreto de cada indivíduo e adquire a forma de uma organização social da produção, baseada na troca, na produção e na mercantilização do trabalho humano. No sistema capitalista, tanto a concepção de homem, quanto a de trabalho aparecem minimizadas, descaracterizadas, na medida em que o objetivo do capitalismo é a reprodução do capital, constituindo-se em um sistema econômico e social que dissocia, alija o ser humano da sua condição de sujeito histórico e social. Evidentemente, isto também interfere na organização e no desenvolvimento do processo educacional. O trabalho do professor, a construção do projeto político-pedagógico e a gestão escolar Os professores das redes públicas, a exemplo dos demais trabalhadores do setor público, vendem sua força de trabalho para o Estado. Seu trabalho, assim, não está diretamente vinculado à valorização do capital, não representa um investimento capitalista na produção de mercadorias e, portanto, não produz mais-valia. Entretanto, seu trabalho é diretamente afetado pela forma como está organizado o sistema capitalista e é por ele influenciado e tende a ser por ele dirigido. Nos dias atuais, a organização e a gestão do processo educativo, nas escolas, estão permeados pelos métodos gerenciais próprios da empresa privada, capitalista, na qual os trabalhadores são organizados por funções repetitivas e sequenciais, sem que qualquer um deles domine todo o processo produtivo. Nas escolas públicas, hoje, embora muito se fale no trabalho coletivo e na valorização do trabalho do professor, há uma tendência a se reproduzir o mesmo modelo, no qual cada professor é considerado como uma das peças do processo. Assim, ele não pode inserir-se plenamente no processo, participando da definição das políticas, com condições de tempo, espaço e estrutura para interagir com seus pares e apropriar-se de seu próprio trabalho para realizar integralmente sua função social, que não é apenas a de transmitir o saber historicamente acumulado, mas, também produzir novos conhecimentos e formar sujeitos conscientes, capazes de atuar de forma plena na sociedade. A educação no setor público, diferentemente de outras áreas da atividade humana, não produz mercadorias – forma pessoas. Ela tem no ser humano seu ponto de partida e seu ponto de chegada, pois embora o processo educativo seja mediado por meios materiais, como as estruturas das escolas, equipamentos, materiais pedagógicos e outros, é na relação humana que ele se realiza. Por isso, para além de qualquer outra melhoria estrutural, embora importante, o foco das ações para aprimorar o processo educativo deve estar no desenvolvimento de políticas que valorizem o trabalho do professor e signifiquem melhor aprendizagem para os estudantes. O coração do processo educativo, em cada unidade escolar, é seu projeto político-pedagógico. E o professor, como ator principal do processo educativo, é também formulador do projeto político-pedagógico, juntamente com os demais segmentos que compõem a comunidade escolar, como determinam os arts. 13 e 14 da LDB: Art. 13 Os docentes incumbir-se-ão de: I - participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; II - elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; III - zelar pela aprendizagem dos estudantes; IV - estabelecer estratégias de recuperação para os estudantes de menor rendimento; V - ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional; VI - colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade. Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na Educação Básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios: I - participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; II - participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes. Desta forma, os espaços de trabalho pedagógico coletivo e outros espaços coletivos de interação do professor com seus pares e com os demais segmentos da comunidade escolar são fundamentais e devem ser contemplados em sua jornada de trabalho, pois são atividades inerentes à sua função como profissional da educação. Como imaginar que um professor possa estar motivado para desenvolver um trabalho de qualidade se sua opinião sequer é considerada nas decisões que se tomam na escola e na gestão do sistema de ensino? Como pode o professor dedicar-se de forma plena ao seu trabalho se recebe salários ainda aviltantes, em que pesem os avanços já conquistados? Com as condições de trabalho extremamente deficientes na imensa maioria das escolas públicas em todo o país? Com salas superlotadas, violência dentro das próprias escolas, autoritarismo, escolas mal planejadas e mal construídas, jornadas de trabalho estafantes? O que significa, então, valorizar o professor? Em primeiro lugar, estabelecer com ele uma relação de respeito a suas necessidades como profissional e como cidadão, sempre tendo como perspectiva a qualidade do ensino. Isto passa pela sua formação inicial, com qualidade; formação continuada no local de trabalho como política estruturante de Estado para a formação permanente do professor; carreira justa e atraente; salários dignos; condições de trabalho; participação efetiva na gestão do projeto político-pedagógico de sua unidade escolar e na definição das políticas educacionais. Neste sentido, a valorização dos profissionais da educação, com programa de formação continuada, critérios de acesso, permanência, remuneração compatível com a jornada de trabalho definida no projeto político-pedagógico é uma das condições para uma escola com qualidade social e deve se concretizar em cada um dos sistemas de ensino, como parte do esforço que faz o nosso país para universalizar o acesso à educação e para garantir a permanência dos estudantes na escola, assegurando a qualidade em todos os seus níveis e modalidades. Destaquemos, aqui, a necessidade da garantia de condições de trabalho para o professor, como fator necessário para assegurar a qualidade do ensino. De um lado, devem ser garantidos salários dignos e compatíveis com a importância de sua função social e sua formação, de tal modo que ele possa se dedicar com tranquilidade e segurança à sua profissão, sem necessidade de desdobrar-se em muitas classes e escolas, com excessivo número de estudantes, ou até mesmo acumular outras atividades, o que evidentemente prejudica a qualidade de seu trabalho. Por outro lado, devem ser garantidas estrutura física e condições ambientais satisfatórias nas escolas, equipamentos, materiais pedagógicos, organização dos tempos e espaços escolares e a correta composição de sua jornada de trabalho, sem sobrecarregá-lo com excessivo trabalho em sala de aula, diretamente com os estudantes. Isto resultará em profissionais mais motivados e mais preparados para ministrar aulas e participar de todo o processo educativo em sua unidade escolar e no sistema de ensino. Adoecimento profissional e condições de trabalho Outro aspecto a ser considerado é adoecimento dos professores em razão das condições de trabalho e inadequada composição da jornada, o que acarreta um custo crescente para os sistemas de ensino com a concessão de licenças e com substituições. O estudo “Identidade expropriada – retrato do educador brasileiro” realizado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), em 2004, mostra que distúrbios vocais, stress, dor nas costas e esgotamento mental e físico são as principais causas de afastamentos de cerca 22,6% dos professores por licenças médicas em todo o Brasil. Ao mesmo tempo, de acordo matéria publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, que teve como fonte dados oficiais, somente de janeiro a julho de 2010 foram concedidas na rede estadual de ensino paulista 92 licenças médicas diárias por motivos de saúde, o que representa 19 mil professores ao ano, sobretudo problemas emocionais, e nada indica que este índice tenha se reduzido. A rede conta com cerca de 220 mil professores. Pesquisa da Universidade de Brasília (UnB), realizada para a CNTE em 1999, a primeira sobre o tema no Brasil, ouviu 52 mil professores, em 1440 escolas nos 27 Estados brasileiros. Naquele momento, os dados revelaram que, em nível nacional, 48% dos educadores sofriam algum tipo de sintoma do burnout, que provoca cansaço, esgotamento e falta de motivação. Outra pesquisa, também desenvolvida pela UnB na Região Centro-Oeste do país e divulgada em 2008, corrobora esses dados, indicando que 15 em cada 100 professores da rede pública básica sofrem da Síndrome de burnout. O estudo foi realizado ouvindo oito mil professores da região e identificou três sintomas mais citados pelos entrevistados: baixa realização profissional, alto grau de esgotamento emocional e distanciamento dos estudantes. Em abril de 2010, a Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), entidade ligada ao Governo Federal, publicou a pesquisa “Condições de trabalho e suas repercussões na saúde dos professores de Educação Básica no Brasil”. Segundo a publicação, corroborando resultados de outras pesquisas: As duas maiores queixas médicas dos professores que participaram de nosso estudo foram os problemas de voz, anteriormente citados, e os transtornos psicológicos, expressos sob a denominação de estresse, depressão, nervosismo, burnout e sempre relacionados a sentimentos de cansaço, frustração, culpa, desânimo, baixa auto-estima, excesso de trabalho. Em outro trecho, o estudo afirma: (...) podemos esboçar um quadro sobre as situações que mais causam sofrimento no trabalho de professor: ver-se constrangido (por meio de avaliações ou ameaças explícitas ou veladas) a fazer o que não acha correto; não conseguir fazer o que acha correto (por falta de infraestrutura das escolas, falta de instrumentos pedagógicos, falta de tempo, falta de formação, falta de apoio), ser confrontado com situações com as quais não sabe lidar (violência, extrema pobreza), ser considerado culpado pelas mazelas da educação, sentir-se isolado nos seus problemas, sem apoio de instâncias colegiadas, não ver seu esforço nem seu trabalho reconhecidos, sentir que seu trabalho tem sido desvalorizado, social e financeiramente. Outros estudos estaduais, regionais ou de âmbito nacional confirmam esses dados sobre a saúde dos professores, sobretudo no que se refere às principais doenças que acometem estes profissionais e as razões mais citadas para esta situação, entre elas a superlotação das salas de aula, barulho, número excessivo de aulas, entre outras. Um exemplo é o Estado de São Paulo. Pesquisa do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP/DIEESE), realizada em 2010, também aponta como as principais causas do adoecimento dos professores o estresse, as doenças da voz, tendinites, lesões por esforço repetitivo (LER) e bursites. Depois das dificuldades de aprendizagem dos estudantes e da superlotação das salas de aula, a jornada de trabalho excessiva aparece como a terceira causa mais citada pelos professores como razões de sofrimento no trabalho. A pesquisa também constatou que mais de 52% dos professores trabalham entre 31 e 40 horas por semana e mais 10% trabalham mais de 40 horas semanais. Vinte por cento dos entrevistados desenvolvem outra atividade profissional além do magistério. Para que tais questões possam ser debatidas e resolvidas, a Resolução CNE/CEB nº 2/2009, que fixa as Diretrizes Nacionais para os Planos de Carreira e Remuneração dos Profissionais do Magistério da Educação Básica Pública, prevê que sejam constituídas no âmbito das redes e sistemas de ensino: (...) comissão paritária, entre gestores e profissionais da educação e os demais setores da comunidade escolar, para estudar as condições de trabalho e prover políticas públicas voltadas ao bom desempenho profissional e à qualidade dos serviços educacionais prestados à comunidade. A título de ilustração, dados do estudo “Um olhar para o interior das escolas primárias” (UNESCO, 2008, Indicadores Mundiais de Educação para Países em Desenvolvimento, maio de 2008, p. 133) mostra que, na comparação com outros 10 países , o Brasil é um dos que tem um dos menores tempos médios destinados às atividades extraclasse, cerca de 15% da jornada, no caso de professores que lecionam em apenas uma escola. No caso de professores que lecionam em mais de uma escola esta média cai ainda mais, ficando abaixo dos 10% da jornada semanal de trabalho. No contexto da lei que trata do piso e da luta pela implantação da jornada ali prevista, conjuntamente com a melhoria das condições gerais de trabalho dos professores, se os governos investirem na valorização docente, deixarão de gastar recursos com licenças médicas e outras consequências do adoecimento dos professores, podendo investir mais na qualidade de ensino, beneficiando, sobretudo, as crianças e jovens usuários da escola pública. Valorização profissional e qualidade do ensino Como já vimos, a Constituição Federal assegura que: Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: V - valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006). VIII - piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 53/2006) A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.º 9.394/96) discorre em seus arts. 62 e 67 sobre a formação do magistério. O art. 67 determina que os sistemas de ensino promovam a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público, os seguintes direitos: I - ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos; II - aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com licenciamento periódico remunerado para este fim; III - piso salarial profissional.; IV - progressão funcional baseada na titulação ou habilitação, e na avaliação do desempenho; V - período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho; VI - condições adequadas de trabalho. Como vimos, é princípio constitucional a valorização dos profissionais da educação escolar e, como princípio específico, a necessidade de piso salarial nacional. Observa-se, então, que a tônica dos dois incisos constitucionais citados acima é a da valorização do magistério, cujos docentes estão incluídos entre os profissionais da Educação Básica. Ressaltamos que o eixo da valorização dos profissionais da educação, como suporte para uma educação de qualidade, é que deu respaldo às diretrizes políticas e legais emanadas pela Lei nº 11.738/2008, que regulamentou o piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da Educação Básica. No espaço de tempo entre a aprovação da Constituição de 1988 e a LDB, o Brasil presenciou, também, a aprovação do Plano Decenal de Educação para Todos (1993-2003), que definiu como meta de valorização salarial, o seguinte: Aumentar progressivamente a remuneração do magistério público, através de plano de carreira que assegure seu compromisso com a produtividade do sistema, ganhos reais de salários e a recuperação de sua dignidade profissional e do reconhecimento público de sua função social. (BRASIL, 1993, p. 43). Podemos discordar do conceito de produtividade aplicado à educação, por entendermos que os resultados do processo educativo não são quantificáveis de acordo com este critério, mas se refletem na aprendizagem dos estudantes, com qualidade. Porém, de acordo com o documento acima citado, a implementação de uma política de longo alcance para o magistério era condição precípua para que se atingisse os objetivos de elevação dos padrões de qualidade educacional. Apontava, enquanto política de financiamento, a criação de fundos, programas e projetos, no sentido de promover a equalização social de oportunidades para todas as regiões. É nesse contexto que foram criados os Fundos – FUNDEF e depois FUNDEB – e se publicou a Lei Federal nº 11.738/2008. Cabe esclarecer que o Projeto de Lei do piso salarial, que foi aprovado em caráter definitivo, resultou de amplo debate envolvendo a sociedade, os gestores das três esferas de governo e o Congresso Nacional. É fruto, também, de dois Projetos de Lei: um oriundo do Ministério da Educação (MEC), e outro do Senado Federal (PL nº 7.431/2006). Assim, regulamentou-se o piso salarial nacional pela Lei nº 11.738/2008. Portanto, a referida Lei resultou da fusão dos dois Projetos de Lei que tramitaram no Congresso Nacional. Os conceitos de piso e de profissionais do magistério dispostos no art. 2.º da Lei nº 11.738/2008 possuem abrangência nacional. O seu objetivo é propiciar maior isonomia profissional no país, e sua incidência se dá sobre os profissionais habilitados em nível superior ou nível médio, na modalidade Normal, atuantes nas redes públicas de Educação Básica da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Esse artigo fixa, também, a composição da jornada de trabalho sobre a qual se aplicará o piso salarial nacional. Três pilares da carreira profissional encontram-se contemplados nesse conceito: salário, formação e jornada. Ao mesmo tempo, é requisito para a existência de uma escola com qualidade social a interrelação entre organização do currículo, do trabalho pedagógico e da jornada de trabalho do professor, tendo como objetivo a aprendizagem do estudante. Implementação da Lei nº 11.738/2008 Em relação à constitucionalidade do § 4º do art. 2º da Lei n° 11.738/2008, transcrevemos parte do voto do Ministro Ricardo Lewandowski, quando fala da importância de um terço da jornada ser destinado para atividades extra-aula: Eu ousaria, acompanhando agora a divergência iniciada pelo Ministro Luiz Fux, entender que o § 4º também não fere a Constituição pelos motivos que acabei de enunciar, pois a União tem uma competência bastante abrangente no que diz respeito à educação. Eu entendo que a fixação de um limite máximo de 2/3 (dois terços) para as atividades de interação com os estudantes, ou, na verdade, para a atividade didática, direta, em sala de aula, mostra-se perfeitamente razoável, porque sobrará apenas 1/3 (um terço) para as atividades extra-aula. Quem é professor sabe muito bem que essas atividades extra-aula são muito importantes. No que consistem elas? Consistem naqueles horários dedicados à preparação de aulas, encontros com pais, com colegas, com estudantes, reuniões pedagógicas, didáticas; portanto, a meu ver, esse mínimo faz-se necessário para a melhoria da qualidade do ensino e também para a redução das desigualdades regionais. O julgamento ocorreu em 27 de abril de 2011 e, portanto, desde então, cada Unidade da Federação deveria organizar as jornadas de trabalho docentes de acordo com o disposto no § 4º do art. 2º. Consagrou-se a tese jurídica, portanto, que dá lastro aos dizeres da lei do piso, formando-se a proporcionalidade de um terço da jornada de trabalho para atividades extraclasses, que, por força de lei, deve cumprir a finalidade prevista no art. 67, inciso V, da Lei nº 9.394/96 (LDB), ou seja, deve ser destinada para estudos, planejamento e avaliação. A lei 11.738/2008, bem como o presente Parecer, tratam da aplicação da legislação em âmbito nacional. Portanto, tudo o que aqui se dirá se aplica às condições que se constituem como regra e não tomam como base as exceções, que serão contempladas em cada rede ou sistema de ensino por decorrência da regra geral. Desta forma, a Lei nº 11.738/2008 se aplica aos professores que são admitidos para trabalhar em determinada jornada de trabalho fixada em lei. São contratados por esta jornada de trabalho que, nos termos do § 1º do art. 2º da Lei nº 11.738/2008, é de até 40 horas semanais. Para efeito do que diz a lei, as variações na forma de contratação nas redes ou sistemas de ensino e as variações da organização curricular ou dos tempos e espaços escolares são levados em conta de modo que a realidade local não seja distorcida e que seja obedecida a proporcionalidade com a regra geral, explicitada no parágrafo anterior. De um modo ou de outro, o que importa é considerar que cada professor é contratado para trabalhar um determinado número de horas, independentemente da forma como o sistema ou rede de ensino se organiza para atender às necessidades de seus alunos. Como afirma o Parecer CNE/CEB nº 8/2004, formulado pelo então Conselheiro Carlos Roberto Jamil Cury, ao qual voltaremos mais adiante, não há qualquer problema que determinado sistema componha jornadas de trabalho de professores com duração da hora-aula em 60, 50 ou 45 minutos, desde que as escolas e a própria rede estejam organizadas para prestar aos estudantes a totalidade da carga horária a qual eles fazem jus. Assim, poderá haver jornada de trabalho de 40 horas semanais, com aulas de 60 minutos; jornada de trabalho de 40 horas semanais, com aulas de 50 minutos; ou jornada de trabalho de 40 horas semanais, com aulas de 45 minutos de duração. De acordo com a legislação, portanto, a jornada de trabalho de 40 horas semanais deve ser composta da seguinte forma, independente do tempo de duração de cada aula, definido pelos sistemas ou redes de ensino: Duração total da jornada Interação com estudantes Atividades extraclasse 40 horas semanais No máximo 2/3 da jornada No mínimo 1/3 da jornada Logo, para cumprimento do disposto no § 4º do art. 2º da Lei nº 11.738/2008, não se pode fazer uma grande operação matemática para multiplicar as jornadas por minutos e depois distribuí-los por aulas, aumentando as aulas das jornadas de trabalho, mas apenas e tão somente destacar das jornadas previstas nas leis dos entes federados, 1/3 (um terço) de cada carga horária. Nesse sentido a lei não dá margem a outras interpretações. Dito de outra forma: independentemente do número de aulas que os alunos obterão durante um período de 40 horas semanais, a Lei nº 11.738/2008 se aplica a cada professor individualmente. Por exemplo, numa jornada de 40 horas semanais, o professor realizará 26 horas de atividades com educandos e 14 horas de atividades extraclasse. Os sistemas tem a liberdade de organizar seu tempo e o tempo de composição da jornada de trabalho de cada professor, desde que não ultrapasse o teto de 40 horas semanais, como determina o § 1º do art. 2º da Lei nº 11.738/2008. A aplicabilidade da lei, portanto, está na jornada de trabalho do professor. Assim, dando consequência ao que foi dito até o momento, a implantação da Lei nº 11.738/2008, no que diz respeito à composição da jornada de trabalho dos professores, deve ser realizada em todos os sistemas e redes de ensino aplicando-se a seguinte tabela: Duração total da jornada Interação com estudantes Atividades extraclasse 40 horas semanais 26 horas semanais (*) 14 horas semanais (**) Horas Atividades com alunos Atividades extraclasse 40 26 14 39 26 13 38 25 13 37 24 13 36 24 12 35 23 12 34 22 12 33 22 11 32 21 11 31 20 11 30 20 10 29 19 10 28 18 10 27 18 9 26 17 9 25 16 9 24 16 8 23 15 8 22 14 7 21 14 7 20 13 7 19 12 7 18 12 6 17 11 6 16 10 6 15 10 5 14 9 5 13 8 5 12 8 4 (*) Observe-se que são 26 unidades, de acordo com a duração definida pelo sistema ou rede de ensino (60 minutos, 50 minutos, 45 minutos ou qualquer outra que o sistema ou rede tenha decidido). (**) Idem. O direito à educação e a jornada de trabalho do professor Para nossa reflexão, registre-se que para o sociólogo alemão Norbert Elias, o tempo não é um fenômeno natural sobre o qual o homem não tem qualquer domínio, nem um dado a priori, sobre o qual o homem elabora juízos, mas um processo simbólico, constituído de forma coletiva pelo homem ao longo de sua existência. Assim, para Elias, sob o ponto de vista sociológico, o tempo não é apenas algo matemático e quantitativo, mas, sobretudo, alguma coisa que se institui a partir de determinadas exigências que são sociais; ou melhor, essa outra concepção temporal parte do pressuposto de que o tempo é, por princípio, uma instância de regulação social que ordena os próprios acontecimentos sociais. O importante é que todos saibam que a questão do direito dos estudantes, aos quais a LDB assegura 800 (oitocentas) horas anuais lecionadas em 200 (duzentos) dias letivos, não se confunde com os direitos dos professores naquilo que diz respeito às suas jornadas de trabalho. Aos estudantes, a escola ou o sistema de ensino deve assegurar o total de horas de aulas determinado pela LDB e, para tanto, devem prover a contratação ou redimensionamento das cargas horárias de quantos profissionais sejam necessários para assegurar aos estudantes este direito. A questão do cumprimento do direito dos estudantes ao total de horas anuais de aulas garantidos pela LDB tem que ser mais bem aprofundada na organização curricular nas escolas e sistemas de ensino. Se consagrarmos que o estudante tem que ter aulas de 60 (sessenta) minutos ininterruptos, e supondo que ele permaneça quatro horas na escola, terá quatro aulas. Mas o estudante tem direito não apenas a uma quantidade de aulas; ele precisa ter acesso a mais componentes curriculares que dialoguem entre si, para propiciar-lhe um conhecimento omnilateral e não fragmentado. Da forma como alguns sistemas executam seus projetos educacionais, resulta em fragmentação, pela equivocada suposição de que um determinado componente curricular possa suprir o conteúdo de outro componente do currículo, que, entretanto, não está contemplado na formação daquele professor. Se queremos qualidade do ensino, devemos imaginar que este estudante que permanece quatro horas na escola pode ter três aulas de diferentes tempos, de diferentes disciplinas e, após o intervalo, mais duas aulas de tempos diferentes, de outros componentes curriculares. Esses diversos componentes podem e devem se relacionar de forma interdisciplinar e transdisciplinar, conferindo ao processo ensino-aprendizagem dinâmica e movimento. Assim, teremos uma resposta pedagógica para a massacrante rotina de muitos estudantes. Às equipes escolares e aos gestores dos sistemas cabe, portanto, fazer com que a rotina escolar não seja estática, assegurando aos estudantes o acesso ao conhecimento de uma forma prazerosa, apreendendo-o e desenvolvendo-o, com qualidade. Ao professor, por outro lado, é garantida a contratação com base em um determinado número de aulas, independentemente da duração de cada aula para efeito do que assegura ao estudante a LDB. Portanto, cada professor deve cumprir um determinado total de aulas semanais, organizadas em: • atividades de interação com educandos; • atividades extraclasse. Estes momentos da atividade do professor, independentemente das denominações que lhes sejam dadas, estão presentes em todos os sistemas de ensino, pois o professor sempre terá em sua jornada momentos em que ministrará aulas aos estudantes, momentos em que desenvolverá trabalhos pedagógicos, que podem ser exercitados na escola ou quando trabalhar em sua própria residência, em tarefas relacionadas ao magistério. Assim, a hora-aula, compreendida do ponto de vista do direito dos estudantes e a hora de trabalho, como base da jornada de trabalho do professor, remetem a unidades e conceitos diferentes. A rigor, nem mesmo uma definição temporal é necessária para uma hora-aula. Tome-se, por exemplo, uma tele-aula, na qual o educando tem acesso por meio da internet. Ele, o estudante, irá aproveitá-la nos momentos em que houver essa possibilidade. Poderá levar três horas para assisti-la ou poderá levar cinquenta minutos. O fato é que ele terá esta aula para si. Não se pode ter, portanto, um procedimento linear em relação a esta questão e sim um olhar dinâmico, a partir do qual o projeto político-pedagógico trabalhe a organização curricular, os tempos e os espaços escolares de forma dinâmica, privilegiando processos inter e transdisciplinares. De acordo com a Lei nº 11.738/2008, portanto, ao professor deve ser assegurada uma composição da jornada de trabalho que comporte, no máximo, 2/3 (dois terços) de cada unidade que compõe essa jornada, ou seja, cada hora de interação com os estudantes. E, em decorrência, no mínimo 1/3 (um terço) destas horas destinadas a atividades extraclasse. Assim, em uma jornada de 40 horas semanais, independentemente da unidade de tempo que as compõem para os estudantes (60 minutos, 50 minutos e 45 minutos) 26 destas serão destinadas à interação com educandos e as demais 14 horas para atividades extraclasse. Senão, como explicar que alguns sistemas que adotam aulas de 45 ou 50 minutos de duração considerem esses tempos para a jornada do professor, mas considerem a hora (60 minutos) para a duração do Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC)? Em relação à atividade do professor na sala de aula, é necessário que se preveja, para cada período de interação com os educandos, um tempo para atividades acessórias daquela de ministrar aulas, que não deve ser confundido com os tempos destinados a outras finalidades. Este tempo, que deve ser computado naquele destinado ao professor em sala de aula, pode ser utilizado para os deslocamentos do professor, para que organize os estudantes na sala e assegure a ordem e o silêncio necessários, para controle de frequência. Também pode ser utilizado para que o professor possa, eventualmente, amenizar o desgaste provocado pelo uso contínuo da voz e outras providências que não se enquadram na tarefa de “ministrar aula” e, também, nas finalidades dos tempos destinados para estudos, planejamento e avaliação definidos tanto pela LDB quanto pela Lei nº 11.738/2008. Assim, somente podem ser computadas nas horas de atividades com estudantes. Contudo, assegurando-se, por exemplo, o mínimo de cinquenta minutos para a tarefa de ministrar aulas, obviamente não está vedado o uso de todo o tempo de 60 minutos para esta finalidade. Tudo dependerá da dinâmica que o professor estabelecer com seus estudantes, em cada aula. Convém assinalar que, em alguns sistemas de ensino, faz-se uma interpretação diferenciada da Lei nº 11.738/2008, no que se refere à composição da jornada de trabalho. Esta interpretação está calcada na preocupação com o aspecto orçamentário, com a eventual falta de professores e outras dificuldades. Tais aspectos também nos preocupam, tanto que, no Voto da Comissão, neste Parecer, tivemos o cuidado de prever a implementação paulatina da composição da jornada de trabalho prevista na lei 11.738/2008 nos casos dos entes federados que apresentam as dificuldades assinaladas. Isto é coerente com o que já foi aprovado por esta Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação na Resolução CNE/CEB nº 2/2009: Art. 4º (...) VII - jornada de trabalho preferencialmente em tempo integral de, no máximo, 40 (quarenta) horas semanais, tendo sempre presente a ampliação paulatina da parte da jornada destinada às atividades de preparação de aulas, avaliação da produção dos alunos, reuniões escolares, contatos com a comunidade e formação continuada, assegurando-se, no mínimo, os percentuais da jornada que já vêm sendo destinados para estas finalidades pelos diferentes sistemas de ensino, de acordo com os respectivos projetos político-pedagógicos; A questão da duração da aula foi objeto do Parecer CNE/CEB nº 8/2004, já referido, que respondeu a consulta formulada pelo CEFET de Goiás sobre o assunto, para efeito de cumprimento do que exige a Lei nº 9.394/96 (LDB). Diz o Parecer formulado pelo Conselheiro Carlos Roberto Jamil Cury: (...) as 800 horas na Educação Básica, os 200 dias e as horas de 60 minutos na carga horária são um direito dos estudantes e é dever dos estabelecimentos cumpri-los rigorosamente. Este cumprimento visa não só equalizar em todo o território nacional este direito dos estudantes, como garantir um mínimo de tempo a fim de assegurar o princípio de padrão de qualidade posto no artigo 206 da Constituição Federal e reposto no Art. 3º da LDB. Dentro do direito dos estudantes, o projeto pedagógico dos estabelecimentos pode compor as horas-relógio dentro da autonomia escolar estatuindo o tempo da hora-aula. Assim a hora-aula está dentro da hora-relógio que, por sua vez, é o critério do direito do estudante, que é conforme ao ordenamento jurídico. Por outro lado, diz o Parecer: O direito dos estudantes é o de ter as horas legalmente apontadas dentro do ordenamento jurídico como o mínimo para assegurar um padrão de qualidade no ensino e um elemento de igualdade no país. Já a hora-aula é o padrão estabelecido pelo projeto pedagógico da escola, a fim de distribuir o conjunto dos componentes curriculares em um tempo didaticamente aproveitável pelos estudantes, dentro do respeito ao conjunto de horas determinado para a Educação Básica, para a Educação Profissional e para a Educação Superior. Responda-se, pois, ao CEFET/GO que não se pode “considerar uma aula de 45 minutos igual a uma hora” que é de 60 minutos. Vê-se, assim, que independente da organização de cada sistema de ensino, que pode definir a hora-aula em 50 minutos, 45 minutos, 40 minutos ou outra quantidade de tempo, a unidade que mensura uma hora é a hora, em sua definição clássica. Ou seja, pode haver aulas com a duração diferente da duração de uma hora, mas a hora, quando assim é dito, é a hora mesma, compreendida como um período de 60 minutos. Isto porque a hora legal brasileira se apoia no Tratado de Greenwich pelo qual o meridiano que passa na cidade de Londres foi tomado como meridiano padrão e ponto de partida para o cálculo da longitude terrestre. Como tal, isto possibilitou a divisão da longitude terrestre em 24 divisões imaginárias em forma de fusos geométricos e cujos pontos possuem, em princípio, a mesma hora legal. Também há que ser considerado que os atuais três fusos horários passaram a vigorar a partir da zero hora de 24 de junho de 2008, determinada pela Lei nº 11.662, sancionada em 24 de abril de 2008. O Parecer citado até aqui, que é corretíssimo e continua atual, não disciplina a forma como os sistemas de ensino devem organizar as jornadas de trabalho de seus professores, mas apenas e tão somente qual é quantidade de tempo que garante aos estudantes os direitos que lhes são consagrados pela LDB. Sobre os professores da Educação Infantil Importantíssimo que se ressalte que tudo o que aqui se disse sobre a jornada de trabalho docente se aplica também aos professores que lecionam na Educação Infantil, pois estes também são professores da Educação Básica (que se inicia na Educação Infantil e se completa no Ensino Médio). O art. 208 da Constituição Federal vai assim redigido: Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - Educação Básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 59, de 2009) (Vide Emenda Constitucional nº 59, de 2009) IV - Educação Infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006) § 1º - O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. § 2º - O não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente. Por força da Emenda Constitucional nº 59/2009, a Educação Básica é obrigatória desde os 4 (quatro) anos de idade. O inciso IV do art. 208 da Constituição Federal afirma que a Educação Infantil integra a Educação Básica. Daí, este nível de ensino é igualmente obrigatório. O § 2º do mesmo artigo diz que o não oferecimento do ensino obrigatório, que também engloba a Educação Infantil, importa em responsabilidade da autoridade competente. A Lei nº 9.394/96 (LDB) sobre o assunto assim dispõe: Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: IV - atendimento gratuito em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade; X - vaga na escola pública de Educação Infantil ou de ensino fundamental mais próxima de sua residência a toda criança a partir do dia em que completar 4 (quatro) anos de idade. (Incluído pela Lei nº 11.700, de 2008). § 4º Comprovada a negligência da autoridade competente para garantir o oferecimento do ensino obrigatório, poderá ela ser imputada por crime de responsabilidade. Complementando o que diz a Constituição Federal, a LDB também afirma a obrigatoriedade da oferta da Educação Básica pelo ente federado, inclusive a Educação Infantil, que, obviamente, integra a Educação Básica. A mesma LDB estabelece que: Art. 11. Os Municípios incumbir-se-ão de: V - oferecer a Educação Infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino. Assim, vê-se que o Município está obrigado a oferecer a Educação Infantil à população que se encontra na faixa etária adequada para tanto. Qualquer dúvida sobre o assunto se dissipa quando se lê o art. 21 da mesma LDB: Art. 21. A educação escolar compõe-se de: I - Educação Básica, formada pela Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio; II - Educação Superior. Os arts. 29 e 30 da mesma LDB também afirmam que: Art. 29. A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. Art. 30. A Educação Infantil será oferecida em: I - creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade; II - pré-escolas, para as crianças de quatro a seis anos de idade. Não há dúvida, então, de que a Educação Infantil integra a Educação Básica e que é obrigatória, importando a sua não oferta em crime de responsabilidade a ser imputado à autoridade responsável. Também não há dúvida, então, de que são docentes aqueles que trabalham com atividades pedagógicas de interação com os educandos, e que, portanto, as disposições relacionadas à jornada de trabalho também se aplicam a estes servidores públicos. Quanto aos trabalhadores que laboram em qualquer modalidade de ensino, quem são eles? A LDB também nos responde esta questão, senão, vejamos: Art. 61. Consideram-se profissionais da educação escolar básica os que, nela estando em efetivo exercício e tendo sido formados em cursos reconhecidos, são: (Redação dada pela Lei nº 12.014/2009) I - professores habilitados em nível médio ou superior para a docência na Educação Infantil e nos ensinos fundamental e médio; (Redação dada pela Lei nº 12.014/2009) II - trabalhadores em educação portadores de diploma de pedagogia, com habilitação em administração, planejamento, supervisão, inspeção e orientação educacional, bem como com títulos de mestrado ou doutorado nas mesmas áreas; (Redação dada pela Lei nº 12.014/2009) A lei permite então, ao contrário do que professam muitos, a formação em nível médio como a adequada para o professor que labora na Educação Infantil e mesmo no Ensino Fundamental. Ora, daí se conclui que não é professor da modalidade da Educação Infantil apenas aquele que é habilitado em nível superior. É, também, aquele que possua habilitação em nível médio, desde que exerça atividades pedagógicas em interação com educandos, exerça a cátedra, voltada para a formação na Educação Infantil. Tais profissionais, que hoje recebem denominações diversas, tais como tutores, monitores ou pajens, mas que tem atuado como professores, devem ser admitidos como tal. O que os diferencia é sua habilitação, se de nível médio ou de nível superior. A composição adequada da jornada de trabalho O trabalho do professor vai muito além de ministrar aulas. Para que sua atuação tenha mais qualidade, o professor precisa, além de uma consistente formação inicial, qualificar-se permanentemente e cumprir tarefas que envolvem a melhor preparação de suas atividades em sala de aula, bem como tempo e tranquilidade para avaliar corretamente a aprendizagem e o desenvolvimento de seus estudantes. Precisamos considerar, também, que nas condições atuais da escola pública, o professor assume outras funções dentro da escola, que ultrapassam as funções de aprendizagem. A esse propósito, diz o estudo da Fundacentro: Em todos os lugares, ouvimos que eles são pais/mães, médicos, enfermeiros, psicólogos, padres/pastores, pacificadores, conselheiros, assistentes sociais, além de professores. Segundo eles, isso acontece porque as famílias se ocupam pouco com os filhos e delegam à escola toda responsabilidade de educá-los. A maioria dos professores disse que os estudantes (principalmente os adolescentes) não têm limites, não respeitam o professor e que, para que a aula ocorra, eles precisam ensinar estes limites exercendo papéis que não são deles. A falta nas escolas de funcionários como coordenadores, enfermeiros, auxiliares também contribui para os múltiplos papéis porque exige que os professores, além de fazer o seu trabalho, tenha que fazer o trabalho dos ausentes. A Conferência Nacional de Educação (CONAE), promovida pelo Ministério da Educação e realizada em 2010, reunindo delegações de todos os segmentos da educação, sendo precedida de um amplo e participativo processo de debates, encontros e conferências municipais, intermunicipais e estaduais, registrou no Documento Final a importância da Lei nº 11.738/2008 para a qualidade da educação. Diz o texto: Agora, cada professor/a poderá destinar 1/3 de seu tempo e trabalho ao desenvolvimento das demais atividades docentes, tais como: reuniões pedagógicas na escola; atualização e aperfeiçoamento; atividades de planejamento e de avaliação; além da proposição e avaliação de trabalhos destinados aos/às estudantes. O documento final da CONAE, entretanto, vai além, ao afirmar que tais medidas devem avançar na perspectiva de uma carga horária máxima de 30h semanais de trabalho, com, no mínimo, um terço de atividades extraclasses (...) atribuindo-se duas vezes o valor do piso salarial, para professores com dedicação exclusiva. Evidentemente, não basta que a lei determine a composição da jornada do professor. Para que essa mudança cumpra plenamente o papel pedagógico que dela se espera, deverá vir acompanhada de mudanças na escola, começando pela reorganização dos tempos e espaços escolares, interação entre disciplinas e outras medidas que serão determinadas pelas políticas educacionais e pelo projeto político-pedagógico de cada unidade escolar, gerido democraticamente por meio do conselho de escola. Assim, a definição de uma jornada de trabalho compatível com a especificidade do trabalho docente está diretamente relacionada à valorização do magistério e à qualidade do ensino, uma vez que o tempo fora da sala de aula para outras atividades interfere positivamente na qualidade das aulas e no desempenho do professor. As discussões mais recentes reforçam o disposto na LDB sobre a necessidade da jornada de trabalho docente ser composta por um percentual de horas destinadas às atividades de preparação de aula, elaboração e correção de provas e trabalhos, atendimento aos pais, formação continuada no próprio local de trabalho, desenvolvimento de trabalho pedagógico coletivo na escola, dentre outras atividades inerentes ao trabalho docente. A previsão de que, no mínimo, 1/3 (um terço) da jornada docente deve ser destinado às atividades extraclasse, tal como estipulada no § 4º do art. 2º da Lei nº 11.738/2008, contribui, sem dúvida, para o desenvolvimento e consolidação do princípio da valorização do magistério. Aliás, conforme já foi assinalado, esse direito já estava previsto também no art. 67, inciso V da LDB, embora, aqui, não houvesse uma proporcionalidade definida: Art. 67. Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos Profissionais do Magistério, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público: V - período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho; Observe-se que o período que deve ser reservado dentro da jornada de trabalho para atividades extraclasses é para: Estudo: investir na formação contínua, graduação para quem tem nível médio, pós-gradução para quem é graduado, mestrado, doutorado. Sem falar nos cursos de curta duração que permitirão a carreira horizontal. Sem formação contínua o servidor estagnará no tempo quanto à qualidade do seu trabalho, o que comprometerá a qualidade da Educação, que é direito social e humano fundamental; Planejamento: planejar as aulas, da melhor forma possível, o que é fundamental para efetividade do ensino; Avaliação: corrigir provas, redações etc. Não é justo nem correto que o professor trabalhe em casa, fora da jornada sem ser remunerado, corrigindo centenas de provas, redações e outros trabalhos. Ressalte-se o espaço das atividades extraclasse como momento de formação continuada do professor no próprio local de trabalho. Não é mais possível que os professores, como ocorre hoje na maior parte dos sistemas de ensino, tenham que ocupar seus finais de semana e feriados, pagando do próprio bolso, para participar de programas de formação de curtíssima duração, sem aprofundamento, que não se refletem em mais qualidade para seu trabalho, por conta da ausência de espaços em sua jornada de trabalho regular. É de bom tom, embora não obrigatório, que os sistemas de ensino considerem inserir na fração da jornada destinada às atividades extraclasse período destinado aos professores que se constitua em um espaço no qual toda a equipe de professores possa debater e organizar o processo educativo naquela unidade escolar, discutir e estudar temas relevantes para o seu trabalho e para a qualidade do ensino e, muito importante, seja dedicado também à formação continuada dos professores no próprio local de trabalho. Tal formação pode ser efetivada por meio de parcerias e convênios entre as redes estaduais, distrital e municipais de ensino e as universidades públicas e agências públicas de formação de professores. Estas parcerias e convênios são importantes não apenas porque trazem para dentro das escolas as teorias educacionais e as propostas didáticas elaboradas e trabalhadas no interior das universidades, mas, também, porque permitem aos professores das escolas públicas interferir para alterar a própria formação inicial dos docentes nas universidades, expondo e discutindo sua prática cotidiana. Isto possibilitaria avançarmos na indissociável relação entre teoria e prática pedagógica, hoje muito distanciada. Este tipo de trabalho influenciaria, certamente, na própria formação inicial dos professores e aproximaria a escola real da escola ideal, pela qual lutamos. As horas de atividade extraclasse são essenciais para que o trabalho do professor tenha a qualidade necessária e produza resultados benéficos para a aprendizagem dos estudantes. Considerando-se ou não o disposto mais acima, estes momentos incluem o trabalho que o professor realiza fora da escola, normalmente em sua própria residência, incluindo leituras e atualização; pesquisas sobre temas de sua disciplina e temas transversais; elaboração e correção de provas e trabalhos e outras tarefas pedagógicas. O professor sempre trabalhou, e muito, em sua própria residência. A composição da jornada de trabalho que considera e remunera este trabalho, reconhece um fato concreto e, com a Lei nº 11.738/2008, melhora o tempo e as condições para que este trabalho seja feito. Registre-se que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi alterada pela Lei nº 12.551/2011, sancionada em 15 de dezembro de 2011, que equipara o trabalho realizado no local de trabalho e o realizado na residência do trabalhador, desde que comprovável, inclusive por meios eletrônicos. E o trabalho que o professor realiza em sua casa pode ser facilmente comprovado. Tem sido constantemente noticiado pelos meios de comunicação a queda do número de universitários formados em cursos voltados a disciplinas específicas do magistério e a crescente evasão de professores da educação pública para outras atividades, em razão dos baixos salários e da desvalorização profissional do magistério. Em março de 2011, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP/MEC) divulgou que, em 2007, havia 2.500.554 profissionais atuando em sala de aula, mas em 2009 este número baixou para 1.977.978 professores. O Censo do Ensino Superior, realizado pelo INEP/MEC, registra que, de 2005 a 2009, o número de estudantes universitários formados em cursos de formação de docentes para a Educação Básica caiu de 103 mil para 52 mil. O mesmo se repete no caso dos cursos de licenciatura, tendo havido queda no interesse pela carreira: naquele período o número de formados em licenciaturas caiu de 77 mil para 64 mil. Em 2007, por exemplo, de acordo com o censo, formaram-se nas disciplinas especificas do magistério 70.507 pessoas, 4,5% menos que em 2006. Naquele ano, as maiores quedas, entre as disciplinas obrigatórias da Educação Básica, em relação a 2006, ocorreram em Letras (-10%), Geografia (-9%), Química (-7%) e Filosofia (-5%). Além disso, de acordo com mesmo censo, 300 mil professores ministram aulas em áreas diferentes daquelas nas quais se formaram. Esta situação é contraditória com as necessidades da educação brasileira e com as políticas direcionadas à progressiva universalização do ensino no país. É necessário, portanto, combater as causas desta evasão e da pouca motivação dos jovens para o magistério. Temos a convicção de que, embora a Lei nº 11.738/2008 não resolva, por si, os problemas que se acumulam ao longo de muitas décadas no que se refere à valorização dos profissionais do magistério, a sua implantação contribui, e muito, para que retornem aos quadros da educação pública milhares de professores que se afastaram para exercerem outras profissões mais atraentes do ponto de vista salarial e das condições de trabalho. O Ministro Cézar Peluso, então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), pronunciou-se sobre a questão da função social do magistério e sua valorização, ao participar em 2008 dos debates durante o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) nº 3772, contra a Lei nº 11.301/2006, que estende o benefício da aposentadoria especial aos professores ocupantes de cargos de direção, coordenação e assessoramento pedagógico. Disse o magistrado naquela ocasião que: (Trata-se) de valorizar uma função importante, como diz o art. 205 (da Constituição Federal), de uma atividade que faz parte da dignidade humana porque é condição necessária para o desenvolvimento das virtualidades da pessoa. Isto é, uma pessoa que não recebe educação, não se desenvolve como pessoa e, portanto, não adquire toda a dignidade a que tem direito, e a educação é, portanto, nesse nível, tão importante, que quem se dedique a ela como professor recebe do ordenamento jurídico um benefício correspondente. A Resolução CEB/CNE nº 2/2009, que fixa as Diretrizes Nacionais para os Planos de Carreira e Remuneração dos Profissionais do Magistério da Educação Básica Pública, estabelece em seu art. 4º, inciso IV: Art. 4º (...) IV - reconhecimento da importância da carreira dos profissionais do magistério público e desenvolvimento de ações que visem à equiparação salarial com outras carreiras profissionais de formação semelhante; Evidentemente, o piso salarial profissional nacional não atinge este objetivo, mas estabelece um novo patamar a partir do qual se pode persegui-lo. Da mesma forma, a destinação de, no mínimo, 1/3 da jornada de trabalho para atividades extraclasse não esgota a questão, posto que diversas entidades representativas dos professores, inclusive sua entidade nacional, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), têm apresentado reivindicações mais ousadas quanto à composição da jornada de trabalho. Entretanto, trata-se de um inegável avanço, que pode trazer de volta para as escolas públicas muitos profissionais que não suportavam as excessivas jornadas em salas de aula, com grande número de estudantes. Assim, por tudo o que foi aqui apresentado, de forma sucinta, é forçoso reconhecer que a Lei nº 11.738/2008 é mais uma contribuição ao processo de valorização dos profissionais do magistério e de melhoria da qualidade de ensino e, como tal, não pode ser ignorada ou descumprida pelos entes federados. Obviamente, isso exigirá um debate aprofundado sobre o regime de colaboração entre os entes federados, partilhando responsabilidades e recursos econômicos, assumindo a União suas “funções redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais”. Cabe, portanto, a todos os órgãos do estado brasileiro cumpri-la e fazê-la cumprir, sob pena de se tornar letra morta uma lei que é resultado da luta dos professores e da conjugação dos esforços das autoridades educacionais, gestores, profissionais da educação e outros segmentos sociais comprometidos com a qualidade da educação e com os direitos de nossas crianças e jovens a um ensino de qualidade social. Desta forma, é possível conceber a aplicabilidade desta lei de forma paulatina, desde que devidamente negociada com gestores e professores, através de comissão paritária. Sendo que a representação dos professores deve ser oriunda de sindicato ou associação profissional. Onde não houver representação sindical ou associação profissional, a representação será composta de professores escolhidos por seus pares para tal finalidade. II – VOTO DA COMISSÃO missão saúda os entes federados que já aplicam a composição da jornada de trabalho prevista na Lei nº 11.738/2008 ou percentual maior para atividades extraclasse, sempre na expectativa de que não haja nenhuma regressão por conta de uma regra de implantação oriunda deste Conselho Nacional de Educação. Por outro lado, é imperioso que os Entes Federados que ainda não aplicam a jornada do piso, providenciem cronograma de aplicação e, por conseguinte, previsão na Lei de Diretrizes Orçamentárias e na Lei Orçamentária. À vista do exposto e considerando a presente dificuldade de alguns sistemas de ensino para a implementação da Lei nº 11.738/2008, que institui o piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da Educação Básica, tanto em relação ao aspecto financeiro, quanto ao que se refere à falta de profissionais suficientes, votamos para que, nesses sistemas, a implementação da composição da jornada de trabalho prevista na referida lei possa se dar de forma paulatina, nos termos deste Parecer e do inciso VII do art. 4º da Resolução CNE/CEB nº 2/2009. Brasília, (DF), 2 de outubro de 2012. Conselheiro Raimundo Moacir Mendes Feitosa – Presidente Conselheira Maria Izabel Azevedo Noronha – Relatora Conselheiro Luiz Roberto Alves – Membro III – DECISÃO DA CÂMARA A Câmara de Educação Básica aprova por unanimidade o voto da Comissão. Sala das Sessões, em 2 de outubro de 2012. Conselheiro Raimundo Moacir Mendes Feitosa – Presidente Conselheira Maria Izabel Azevedo Noronha – Vice-Presidente REFERÊNCIAS: CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Parecer CNE/CEB nº 9/2009 (Revisão da Resolução CNE/CEB nº 3/97, que fixa Diretrizes para os Novos Planos de Carreira e de remuneração para o Magistério dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios) Brasília/DF 2009. SILVA, Antonia Almeida. Democracia e democratização da educação: primeiras aproximações a partir da teoria do valor; A Teoria do Valor Em Marx e a Educação; Vitor Henrique Paro (organizador); Editora Cortez; SP; 2007. RUBIN, Issac Ilich. A Teoria Marxista do Valor. São Paulo/SP: Brasiliense, 1980. CASTRO, Ramon Peña; Trabalho Abstrato e Trabalho Concreto; http://www.epsjv.fiocruz.br/upload/d/Trabalho Abstrato e Trabalho Concreto ts (com pequeno erro).pdf (consulta em 31/3/2012) MARX, Karl; O Capital: crítica da economia política – Livro I. 3 ed. – São Paulo: Nova Cultural, - coleção; Os economistas, 1988. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Resolução CNE/CEB nº 4, de 13 de julho de 2010 – Diretrizes Curriculares Gerais para a Educação Básica; Brasília/DF, 2010. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Parecer CNE/CEB nº 8/2004; Consulta sobre duração de hora-aula; Conselho Nac