domingo, 26 de setembro de 2010

Estiagem pode elevar o preço do feijão para R$ 15

Previsão
Estiagem pode elevar o preço do feijão para R$ 15
O alimento que não falta nas refeições dos brasileiros e que hoje custa, no mínimo, R$ 3 pode alcançar o seu valor recorde devido à alta de 73% do produto no campo
Ariane Noronha

Alerta: Consumidores devem comprar uma quantidade maior do produto para se precaver do aumento
O feijão, grão de alto poder nutritivo e rico em ferro, poderá ficar caro para o bolso dos consumidores que não dispensam o alimento durante as refeições. Este ano, é possível que o preço desta leguminosa bata um novo recorde e ultrapasse o valor de R$ 8 o quilo, como aconteceu em 2008, e chegue a custar cerca de R$ 15. O aumento pode acontecer por causa da alta de 73% do produto no campo, motivada pela seca que vem afetando vários Estados do País. O quilo do grão hoje é encontrado no comércio por, no mínimo, R$ 3.
De acordo com o presidente do Conselho do Instituto Brasileiro do Feijão e Legumes Secos (Ibrafe), Marcelo Eduardo Lüders, a previsão de aumento da semente é mais um alerta para que o consumidor compre uma quantidade a mais do produto. "Os fatores que podem contribuir com tudo isso são o clima seco e as consequentes perdas devido à estiagem. A primeira grande safra seria em São Paulo, mas teremos entre 30% e 40% de perda", explicou.
Segundo ele, o tempo de plantio e colheita dos grãos leva mais ou menos cem dias. "Neste período, tudo pode acontecer", completou.
Lüders contou que o Instituto sempre busca sensibilizar os supermercados para que não sejam tão gananciosos a ponto de elevar o preço do feijão para mais de 50%, pois, para o presidente, existe um custo social enorme para o País e, por isso, o varejo deve estar consciente neste aspecto e ser mais "patriota". "O aumento do produto é 50% culpa do clima e 50% culpa do próprio governo, que não pode tabelar o feijão, mas pode sensibilizar o varejo quanto à venda deste produto, que é um dos alimentos básicos".
Comerciantes já sentiram uma pequena diferença na hora de comprar o produto para revender ao consumidor. O subgerente de um supermercado em Suzano, Wilson Cândido de Jesus, contou que o valor do feijão no estabelecimento passou de R$ 3,80 para R$ 4,98 na última semana. De acordo com ele, alguns clientes já até reclamaram do preço, porém, não há como baixar. "Aumentamos o preço de 35% a 45% no máximo, mas acredito que população não deixará de comprar porque o alimento é necessário".
Para a diarista Delvira Flora da Silva, de 65 anos, não é possível manter uma boa alimentação sem o feijão durante as refeições. Se o preço do produto chegar ao valor de R$ 15, por exemplo, ela continuaria comprando o grão, porém, em quantidade menor. "Eu como e sempre faço para os meus netos que adoram. O feijão faz muito bem para a saúde"

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Tariq Ali e os 70 anos do assassinato de Trotsky




Tariq Ali e os 70 anos do assassinato de Trotsky

Trotsky foi o único pensador da esquerda que compreendeu que, para derrotar o fascismo, há que se unir aos social-democratas e aos liberais, para construir uma frente. Este é um tema de grande atualidade, ainda que não haja social-democratas de esquerda. Toda essa questão de construir pequenas seitas em torno de um par de líderes é bastante deprimente. Seria triste que o legado de Trotsky se reduzisse a isso. Qualquer esquerda que seja, que emerja das ruínas do século vinte terá de ser capaz de aprender e de desaprender. Caso contrário, vale mais ser um vendedor de peixe do que um esquerdista dogmático e religioso. A análise é de Tariq Ali.

Sin Permiso

O escritor, ativista e analista político Tariq Ali foi uma figura destacada do trotskismo nos anos 60 e 70. No entanto, seu compromisso com Trotsky vai além da política de partido. Como testemunho disso, apresentamos a conversa que Ali teve há umas semanas com Kirsty Jane McCluskey, do coletivo de bibliófilos Vulpes Libris, por ocasião da sua apresentação no Festival do Livro de Edimburgo, de sua nova novela, "A noite da mariposa de ouro..."

Em Anos de Luta nas Ruas você disse que leu pela primeira vez a bibliografia de Trotsky de Isaac Deutscher quando estava doente, acamado (uma experiência arrepiante, sobre a qual preferiria não ter tantas informações). Depois daquilo, quando começou a ler Trotsky? Qual foi seu primeiro contato com a obra?

Tariq Ali – Depois de ler a trilogia de Deutscher, vi-me arrastado de maneira natural a ler os escritos do protagonista daquela biografia fascinante, sem precedentes. Assim, pois, comecei por "Minha Vida", a autobiografia de Trotsky, um texto belamente escrito, que se lê como se fosse ficção de alto fôlego. A qualidade literária de Trotsky me impactou enormemente. E isso me conduziu a outros escritos seus. Para minha geração, foi um autor muito importante, pois oferecia uma alternativa a um sistema que já então não funcionava e que ia por um mau caminho. Foram aquelas leituras que me tornaram trotskista, entre os anos 60 e 70.

Ernest Mandel foi outro ponto de referência. O que chama a atenção é que, naquela época entramos em contato com gente que conhecia quem tinha tido um vínculo direto com os bolcheviques, o que fazia com que nos sentíssemos os continuadores de uma tradição. Pensa, por exemplo, no título O que é a União Soviética e para onde vai?, que foi mal traduzido como A revolução traída. É um livro soberbo. Ali ele dizia que, ou a União Soviética dava um passo adiante e se convertia numa democracia socialista, ou bem haveria uma regressão capitalista na qual boa parte dos burocratas de então iriam se converter nos milionários do futuro. Seus críticos diziam: “é uma loucura!”. Não havia ninguém que pudesse ir tão longe na análise. Trotsky tinha uma mente muito fina, e creio que foi a combinação de suas qualidades como intelectual e como revolucionário o que o tornou tão interessante, para mim, desde cedo, e também para muita gente que estava entrando na vida política nos anos 60.

Você se tornou trotskista, então. Foi um caminho natural naquela época?

Tariq Ali - Naquela época, sem dúvida. E não podia ser de outro modo. Depois, pouco a pouco você ia se dando conta de que Trotsky era uma coisa, e muitos grupos trotskistas, eram algo bastante diferente. Não é à toa que o próprio Trotsky, em resposta a tudo isso, tenha declarado “Não sou trotskista”.

Desde os anos 60, que com tanta eloquência você descreveu em Anos de Luta na Rua, como evoluiu a sua relação com Trotsky?

Tariq Ali – Quando as pessoas me perguntam: “você ainda é trotskista?” digo que não, porque não sou membro de nenhuma das organizações que se autodenominam assim. Para ser honesto, penso mesmo é que estão esgotadas. Por outro lado, sigo me considerando trotskiano, já que seu impacto em mim persiste, sobretudo em tempos que são filhos de uma grande derrota, algo que ele conheceu muito bem. A maior parte de sua vida transcorreu nessas condições. Às vezes, quando volto a alguns ensaios seus que não tinha lido durante vinte ou vinte e cinco anos, indefectivelmente aprendo algo. É bastante surpreendente.

Uma questão importante em Trotsky foi seu desprezo pelos idiotas. E isso foi um problema para ele, porque o Partido Bolchevique estava cheio de idiotas. Trotsky não perdia tempo com eles, mas ao final foram esses tipos que se mobilizaram contra ele. Me encantava a anedota de Trotsky naquela reunião do Politburo. Como o nível do debate era insuportável, pegava uma novela de Balzac ou de Stendhal e se punha a lê-las em meio a tudo aquilo. Sem dúvida é uma atitude muito arrogante, mas também bastante admirável. Para mim, Trotsky continua sendo uma figura central do século vinte – como intelectual, como político, como revolucionário – e sua obra perdurará.

Agora há muitos historiadores guerreiros frios profissionais que pretendem se desfazer dele. Não suportam que houvesse um bolchevique capaz de compreender aquele sistema melhor do que eles, numa época, ademais, em que eles estavam totalmente mobilizados por ele. Agora escrevem livros para provar que nada de bom saiu daquilo, que tudo era terrível, que todos eram iguais; que não há diferença entre Lênin e Stalin, que não há diferença entre Trostsky e Stalin. Para gente como Robert Service, Stalin poderia inclusive considerar-se melhor em alguns aspectos. Stalin era alguém com quem se podia fazer negócios, prosperar. E por sorte não era judeu. Stalin, afinal de contas, havia conservado de maneira escrupulosa a parte que lhe havia tocado depois da Segunda Guerra Mundial, ainda que para seu próprio povo tenha sido um desastre. O poema de Yevtushenko, no qual se duplica ou triplica a guarda ao redor de sua tumba era revelador.

Não se pode tomar os trabalhos de gente como Service demasiado a sério. É antes uma moda ideológica. Não chega aos pés do que Deutscher fez, por exemplo. E não porque Deutscher fosse totalmente acrítico, mas porque era capaz de situar toda aquela experiência num outro nível. A moda atual consiste em dizer que tudo o que se passou durante aquele período foi negativo. E isso eu não aceito e não o farei, nunca. É próprio de uma escola de historiadores que se rende aos fatos consumados e que ignora as diferentes possibilidades existentes em cada situação. A Revolução Francesa sofreu um destino similar, por isso em Paris hoje existe uma estação de Metrô chamada Stalin, mas não há nenhuma rua com o nome de Robespierre.

Na sua opinião esta visão das coisas se limita à academia ou reflete uma mudança mais ampla na atitude frente a Trotsky?

Tariq Ali - Acredito que é uma questão acadêmica. No resto do mundo, a geração mais jovem sequer pensa nessas questões. Essa é a tragédia. Isto é algo próprio da academia e dos acadêmicos que querem fazer um nome mostrando que são servidores leais ao estado e às suas necessidades, e que não há alternativas ao mundo tal como ele é. Tem-se publicado alguns livros de acadêmicos jovens – também ruins – que não consegui nem ler. Tenho no meu escritório, não tenho nem passado os olhos neles.

Há uma cierta tendência - penso em gente como Slavoj Zizek - que pede o "repetir" Lenin. Acredita tem sentido “repetir" Trotsky, de maneira ele fosse lido pelas gerações mais jovens?

Tariq Ali - Sim, acredito que sim, Zizek não poderia sabê-lo porque ele não leu Trotsky. O que Zizek faz de maneira brilhante, com graça, é escandalizar a burguesia. É um provocador no sentido estrito do termo. Toma Lênin, a quem todos odeiam, a quem o pensamento dominante vê como um criminoso assassino, e força o leitor a se confrontar com suas idéias. Na realidade, alguém deveria tentar um exercício similar com Trotsky, antes que passe muito tempo. Na editora Verso estamos pensando em fazê-lo.

Hilary Mantel, por exemplo, escreveu uma novela sobre Robespierre que me parece muito boa. E, há décadas, Alan Brien escreveu outra, menos exitosa e não tão bem sucedida, sobre Lênin. Não funcionou, mas a intenção era boa.

Posso entender que nos anos sessenta o vínculo entre o que Trotsky descreve e o que você estava vendo fosse mais estreito. Mas qual deveria ser a aproximação com Trotsky hoje? O que seria diretamente relevante, e o que tem um valor mais simbólico ou de estímulo ao debate?

Tariq Ali – Creio que o seu História da Revolução Russa segue sendo um dos melhores testemunhos de alguém que participou de um levante revolucionário. Sua autobiografia, seus ensaios, sua visão global da realidade e das tendências que se manifestavam nela, sua predição do triunfo do fascismo na Alemanha, sua advertência aos judeus do destino que os esperava se Hitler se impusesse. Ninguém escreveu naquela época com lucidez semelhante, e isto é algo a respeito do quê as pessoas ainda têm o que aprender. Os escritos de Trotsky sobre como se poderia derrotar o fascismo na Alemanha são um corretivo muito importante ao pensamento sectário. A fase, por outro lado, em que se dedicou a argumentar contra diferentes grupelhos sectários não é o mais interessante de sua obra. Era uma época de derrota, e isso não era o seu forte. A força intelectual de Trotsky explodiu quando ele entrou em contato com os movimentos sociais de massas. Seus escritos sobre a questão judaica carecem de interesse. Esse é livro que teria de ser resgatado, porque é muito importante. Trotsky foi o único pensador da esquerda que compreendeu que, para derrotar o fascismo, há que se unir aos social-democratas e aos liberais, para construir uma frente. Este é um tema de grande atualidade, ainda que não haja social-democratas de esquerda. Toda essa questão de construir pequenas seitas em torno de um par de líderes é bastante deprimente. Seria triste que o legado de Trotsky se reduzisse a isso.

Numa conversa anterior com Geoffrey Swain, ele mencionava as considerações de Trotsky sobre planificação econômica em relação com a América do Sul. Você acredita que Trotsky escreveria hoje sobre a América do Sul? Veria o que está ocorrendo ali como algo de interesse, como um lugar em que suas idéias em matéria de planificação poderiam ser úteis?

Tariq Ali - Sim, sem dúvida alguma. Trotsky, em todo caso, defenderia a necessidade de tomar o controle do estado e de seu aparato. E isto não ocorreu. O que há na América Latina hoje é – utilizando a linguagem do próprio Trotsky – uma situação de poder dual. Há uns governos eleitos com uma base de massas. Mas o exército continua sendo a coluna vertebral do estado e esse exército não foi nem destruído nem transformado. Creio que é isso o que ele diria. Em todo caso, na hora de aconselhar como planificar, etc, alguns de seus escritos são realmente muito bons.

Você falava antes de "Minha vida" como um artefato literário. Também nesse terreno Trotsky o influenciou, como escritor ou como leitor?

Tariq Ali – Há alguma influência, mas cada um só pode escrever por si. Ademais, você já sabe, viemos de gerações totalmente diferentes. Para mim o inglês é uma segunda língua; Trotsky escrevia em russo. Creio que conservo algumas de suas maneiras de ver o mundo, mas nem sequer trato de escrever como ele. Isso não se pode imitar, mesmo se quisesse. Era engraçado, nos anos sessenta, como tinha gente em algumas seitas que procuravam falar, adotar as poses de Lênin, de Marx e de Trotsky nos debates do dia a dia, como se vivêsemos no mesmo mundo. E que depois tentavam imitar como apagar dissidentes ou opositores de suas minúsculas organizações. Para alguns era uma espécie de arte: julgamentos, expulsões, denúncias. Uma arte péssima, por certo. Nunca pude levá-los a sério. Eu mesmo parodiei algumas dessas coisas em uma de minhas primeiras novelas, que me tornou bastante impopular. Mas sentia necessidade de fazê-lo, e não me arrependo.

A atual tradição trotskista no Reino Unido...pensando na distinção que fazias há um momento entre trotskista e trotskiano, quais conselhos você daria a esses grupos? O que você acredita que eles deveriam mudar na sua relação com Trotsky?

Tariq Ali - Acredito que essas mudanças já estão tomando lugar, lentamente. Esses grandes pensadores do passado – Marx, Lênin, Trotsky, Gramsci – todos foram importantes e dizem coisas que se pode aprender. Mas não devem ser tratados como deuses. Este foi um grande, grande problema nos movimentos comunistas e trotskistas: seu estilo era muito religioso. Era como se uma citação de Marx ou de Trotsky fossem suficientes para encerrar um debate. Para ser honesto, isso nunca me impressionou muito, nem mesmo quando era membro daqueles grupos, e hoje não me impressiona absolutamente. Há que aprender a ajuizar os méritos dos argumentos de quem nada tem a ver com a esquerda, e encontrar a maneira de debater com eles. E há que fazê-lo porque todas aquelas referências que eram comuns nos anos 60 e 70, e até certo ponto, nos 80, desapareceram. Viraram pó.

Não se pode, portanto, dizer “vamos fazer isso porque Trotsky disse, aqui”. E depois virá alguém que encontrou uma passagem diferente de Trotsky para citar que prova o contrário. E o mesmo com Marx. Mas essa não é uma boa maneira de argumentar. É uma maneira religiosa, e nem Trotsky nem Marx eram pessoas religiosas. Pelo contrário, criticaram duramente esse estilo e essa maneira de fazer as coisas. Eu acredito que esse estilo remonta ao discurso de Stalin no funeral de Lênin: "A ti nos encomendamos, camarada Lenin...". Uma coisa triste. Eu creio, de fato, que um dos grandes problemas com a próprio evolução de Trotsky é que, como o acusavam permanentemente de não ser leninista, acabou por se converter num tipo de leninista semi-religioso, quando na realidade tinha direigido críticas agudas a Lênin, no passado. Sempre senti, e ainda acredito, que isso foi uma autêntica tragédia para esse homem. Imagina uma inteligência tão poderosa. Seguramente ele sabia que se estava cometendo erros, e como esses erros podiam ou deviam ser evitados, mas não se atreveu a dizê-lo por temor ao que seus oponentes políticos podiam fazer com isso. Deve ter sido uma tortura para ele e acredito, sendo quem era, tinha plena consciência do que se passava.

Imagina que um jovem ou melhor, uma pessoa de qualquer idade, politicamente consciente, descubra Trotsky e se sinta inspirada por ele O que você o aconselharia? Como se pode ser ativista a partir da influência dele?

Tariq Ali: A primeira coisa que um ativista deve ter é a capacidade de ser capaz de aprender de diferentes tradições. De Trotsky, de Lênin e de Gramsci, certamente. E de Marx, claro. Pode-se aprender muitíssimo desses grandes pensadores. Mas seria um erro colocá-los num pedestal. Há que se criar algo novo. Nunca será totalmente novo, visto não podemos ignorar o passado e nossa história, mas há coisas que devem ser feitas de outro modo. O estilo de organização política em que não há debate nem discussão sérios, em que se expulsam minorias...tudo isso era uma paródia nos anos 60 e 70, e hoje é claramente um engodo. Eu penso que as pessoas jovens não sentem atração por isso. O que você me pregunta não está claro. Uma resposta honesta seria que não estou um por cento seguro de qual seria o melhor caminho. O que sim, sei, é que seguir o velho estilo é um caminho errôneo.

Talvez, como dizia Deutscher, às vezes seja preciso retirar-se em sua torre.

Tariq Ali - Isso me parece muito importante. Marx também disse isso, depois das derrotas de 1848. Você pode ir, pensar, escrever, mas nunca pode deixar de todo de estar ativo. Quando atrocidades ocorrem, quando se envia pessoas para a guerra, quando se mata, não se pode permanecer à margem. Ao mesmo tempo, devemos ser realistas. Quando se lê muitos documentos escritos por grupos de extrema esquerda...quem pode lê-los? Quer dizer, são pouco mais que boletins internos. Qualquer esquerda que seja, que emerja das ruínas do século vinte terá de ser capaz de aprender e de desaprender. Caso contrário, vale mais ser um vendedor de peixe do que um esquerdista dogmático e religioso...

(*) Tariq Ali é membro do conselho editorial de SinPermiso. Seu último livro publicado é The Duel: Pakistan on the Flight Path of American Power [há tradução para o castelhano pela Alianza Editorial, Madrid, 2008: Pakistán en el punto de mira de Estados Unidos: el duelo].

Tradução: Katarina Peixoto

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Como se elegem os deputados

Escrito por Matheus


Como se elegem os deputados?



A eleição de deputados, assim como a de vereadores, é chamada de proporcional. Este texto pretende explicar como funciona a eleição proporcional.

O estado de São Paulo, por exemplo, tem direito a 70 deputados federais. Não serão necessariamente os 70 mais bem votados que serão eleitos. A conta funciona do seguinte modo.

O total de votos válidos é dividido pelo total de vagas para se chegar ao quociente eleitoral. São considerados votos válidos os votos nominais - no número do candidato - e os votos de legenda - no número do partido. Brancos e nulos são inválidos e não contam. A votação para os demais cargos - presidente, governador, senador e deputado estadual - não interferem em nada na eleição para deputado federal, cada eleição é independente uma da outra.

Se houver em São Paulo 21 milhões de votos válidos, o quociente eleitoral será de 300 mil votos (21 milhões dividido por 70 é igual a 300 mil). Somente os partidos, ou coligações, que alcançarem o quociente eleitoral, 300 mil votos, têm direito a eleger deputados.

Os partidos podem se coligar. Na prática, isso significa que os partidos coligados formam um único partido para a eleição. A votação da coligação é a soma de todos os votos nominais e de legenda. O voto na legenda não é contado somente para os candidatos daquela legenda, mas para todos os candidatos da coligação. Os partidos podem ter diferentes coligações para os diferentes cargos. O PA pode se coligar com o PB para a eleição de deputados federais e com o PC para a eleição presidencial.

Vejamos a seguinte situação. A coligação Azul fez 310 mil votos, superando assim o quociente eleitoral. João, o seu candidato mais bem votado, que teve 100 mil votos, será eleito. José, da coligação Amarela, obteve 150 mil votos, porém, o total de votos da coligação foi de 280 mil, não superando assim o quociente. José não será eleito, mesmo tendo mais votos do que o João.

Outra situação. A coligação Verde, que é formada pelo Partido X e o Partido Y, obteve 900 mil votos e pode eleger 3 deputados. Os votos na legenda PX totalizaram 400 mil. Porém, os 3 candidatos mais bem votados da coligação são do PY. Deste modo, nenhum candidato do PX será eleito mesmo a legenda PX tendo obtido mais votos do que o quociente eleitoral.

Nesta eleição, de 2010, o PT está coligado com vários partidos, entre eles o PR, do palhaço Titirica. Isso significa que todos os votos do palhaço e do PT - nominais e de legenda - vão para o total da coligação. Em 2002, Enéas Carneiro teve mais de um milhão de votos. Por isso, outros deputados da sua coligação foram eleitos mesmo tendo uma votação baixíssima. Um deles, o Baratão, teve menos de mil votos.

Por fim, quando você vota em um candidato a deputado, ou a vereador, você está votando automaticamente em todos os candidatos da coligação. Numa eleição proporcional nunca se vota apenas em uma pessoa, o voto sempre conta para todo o grupo do qual ela faz parte. O voto no honesto que está coligado ao bandido ajuda também o bandido. Pense nisso antes de votar.

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domingo, 19 de setembro de 2010

Bulling e Assédio Moral no trabalho

Bullying no trabalho é comum, mas vítima nem sempre percebe


As mulheres são as principais vítimas dos assédios, correspondem a 70% dos casos

Michelle Achkar

Pedir projetos ou relatórios em prazos impossíveis, remarcar reuniões em cima da hora e não avisar funcionário com papel fundamental nela, pedir tarefas triviais para pessoas que ocupam cargos de responsabilidade, deixar de pedir tarefas, espalhar fofocas, excluir pessoas do grupo, não dividir informações, pedir trabalhos que obriguem funcionário a aumentar em muitas horas sua jornada de trabalho, fazer críticas constantes, não reconhecer esforços e desmerecer resultados.

Situações comuns em muitas empresas atribuídas ao mercado de trabalho competitivo, ao estresse da vida cotidiana e a questões de personalidade ou problemas psicológicos, como distúrbio bipolar, caracterizam na verdade cenas do nebuloso terreno do assédio moral no trabalho, também chamado de bullying ou mobbing.

Nebuloso, pois as próprias vítimas muitas vezes não reconhecem a agressão e encaram as cenas como desafios a serem superados na busca da manutenção de sua empregabilidade no mercado e das metas de produtividade das empresas.

O tema começou a ganhar mais espaço com os estudos da psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen, uma das primeiras a se preocupar com o assédio moral no trabalho, assunto de livros como Mal-Estar no Trabalho, de 2002. Mas ainda está longe de ser reconhecido como problema pelas empresas e as discussões não encontram melhores cenários em todo o mundo.

A filial do Japão da grife italiana Prada, por exemplo, foi acusada recentemente de demitir 15 funcionários por serem "gordos", "feios" e "velhos". Rina Bovrisse, funcionária da grife, deu entrada ao processo há duas semanas. Segundo ela, as ordens foram para remover para outlets ou lojas não tão bem localizadas cerca de 30 pessoas, a maioria mulheres na faixa dos 40 anos. Ela ainda conta que o gerente de RH da marca pediu que ela emagrecesse e mudasse a cor do cabelo. Em comunicado, a empresa afirmou que "o tribunal competente japonês rejeitou todas as acusações do empregado e determinou que a rescisão de seu contrato de trabalho era perfeitamente legítimo".

Nas Filipinas, uma ex-comissária de bordo, que foi demitida por estar acima do peso, perdeu uma ação que durou duas décadas de processos numa sentença que considerou que o peso dos funcionários era questão de segurança aérea.

Produção
Idade é o primeiro fator de discriminação que leva ao bullying, segundo a ginecologista e médica do trabalho, Margarida Barreto, uma das coordenadoras do site assediomoral.org.br e pesquisadora do tema há 15 anos. Entre seus trabalhos está a dissertação de mestrado "Uma Jornada de Humilhações", feita a partir de 2.072 entrevistas de homens e mulheres de 97 empresas industriais paulistas, e a tese de doutorado Assédio Moral no Trabalho. A violência sutil, baseada em mais de 10 mil questionários respondidos por trabalhadores de todo Brasil. "Está inserido nas relações de trabalho, na forma da organização e na cultura que banaliza certos comportamentos. E 90% das empresas não encaram o problema e fazem de conta que é algo banal. Normalmente só tomam atitude quando há prejuízo na produção", disse.

As mulheres são as principais vítimas com estatísticas em todo o mundo apontando para 70% dos casos. E a maioria deles envolve a questão da gravidez. "Para maior parte das empresas ainda isso é problema", afirmou Margarida. O repertório de frases de humilhação relatado por vítimas é extenso, como "Teu filho vai colocar comida em sua casa? Não pode sair! Escolha: ou trabalho ou toma conta do filho!" (veja mais exemplos de agressões no link acima).

Assédio sexual
Doze por cento dos casos derivam de situações de assédio sexual. Como foi o caso de Elisabeth Pittman, 51, costureira que viveu sob ameaças de uma chefe durante dois anos. Depois de assediá-la sexualmente, passou a humilhá-la desfazendo todo o trabalho de um dia, obrigando-a a longuíssimas jornadas de trabalho para refazer costuras de mochilas. Ela então procurou entidade de apoio a vítimas de assédio moral e o caso chegou ao Ministério Público do Trabalho.

Mas a trajetória não foi fácil. Elisabeth ficou seis anos afastada e encarou um quadro de depressão profunda e duas tentativas de suicídio, uma delas que a deixou internada durante 20 dias numa unidade de tratamento intensivo (UTI). Reintegrada à empresa, foi acompanhada por um diretor e conseguiu mudar o status de vítima de assédio à presidente da CIPA e líder respeitada. A ex-chefe foi demitida.

Segundo Margarida, casos como o de Elisabeth ainda são exceção e a dificuldade começa pelo próprio empregado reconhecer que foi vítima de abuso. O principal desafio na opinião da estudiosa ainda é a visibilidade. "É preciso ter a convicção de que não pode ser banalizado, não está previsto no contrato de trabalho que se pode ser humilhado de nenhum jeito", afirmou. "Se foi um aborrecimento pontual, falo que aquilo me incomodou e espero que a pessoa reconheça, se desculpe e procure não repetir o ato. Mas se é repetido ao longo da jornada é porque não foi causado por um destempero", disse.

Sarcasmo
"A maior dificuldade é saber quando acontece de fato e quando não é algo que decorre do trabalho. É a sutileza que torna o assédio moral ainda mais perverso. Pois o trabalhador não é assediado de forma clara, na frente de outros, mas muitas vezes na forma de brincadeiras cheias de sarcasmo", afirmou Paulo Eduardo Vieira De Oliveira, juiz do trabalho em São Paulo e professor da Universidade de São Paulo.

Margarida afirma que a principal queixa dos funcionários não é a pressão em si, mas como ela é feita, "de maneira a desqualificar, humilhar, com atos que parecem sutis, mas não são como brincadeiras e fofocas."

Segundo Oliveira, do ponto de vista jurídico, o tema é novo e chegou aos tribunais de forma recente. "Há cinco anos não existiam casos e hoje já há alguns nos quais se pleiteiam indenizações. Mas não existem grandes cases no direito brasileiro", disse. Entre os casos estudados pelo juiz está o de vendedores que, obrigados a bater metas, solicitam empréstimos bancários para comprar os produtos que vendem.

"Há várias decisões em primeira instância, algumas com somas bastante altas", afirmou, lembrando do caso da funcionária de uma farmácia que era obrigada a arrumar diversas vezes as prateleiras de produtos, após seu gerente jogar tudo no chão, o que resultou numa indenização alta.

A imprensa internacional noticiou recentemente que a advogada inglesa Gillian Switalski, 53, aceitou acordo de indenização fora dos tribunais da empresa que ela processava com acusações de perseguição por ser mulher, intimidação e discriminação durante 18 meses, o que a deixou mentalmente abalada e incapaz para o trabalho.

Entre os fatos alegados por Gillian está que à colega de trabalho que tinha filho deficiente foi permitido a trabalhar de casa, enquanto ela cujo um dos filhos também sofre de paralisia cerebral precisava se justificar sobre ausências e tinha seus horários de trabalho controlados.

Em 2006, quando sua mãe morreu, a empresa chegou a exigir receber uma cópia do atestado de óbito para aceitar que não ela cancelasse uma viagem a trabalho. Segundo Oliveira, a prova usada nesses casos é sempre a testemunhal.

Demissão
O objetivo do agressor é forçar o funcionário a desistir do emprego, coro que a pessoa logo encontra na família, parceiro e amigos caso decida contar pelo que vem passando durante a jornada de trabalho. Mas o conselho de deixar o trabalho, além de não ser motivado pelas condições gerais do mercado, ainda encontra uma barreira mais resistente, a psicológica. "A pessoa fica o tempo todo querendo provar que ela não é aquilo que falam ou pensam dela", disse Margarida.

ASSÉDIO MORAL

O que é assédio moral no trabalho?
É o mesmo que violência moral. Quando o seu superior ou mesmo colega de trabalho submete o (a) trabalhador (a) vexames, constrangimentos ou humilhações de forma repetitiva e prolongada, é considerado assédio moral. A humilhação pode acontecer através de palavras ou de outras atitudes autoritárias que gerem constrangimentos, como revistas íntimas ou atitudes que transformem o ambiente de trabalho em um ambiente ruim. O assédio moral humilha e desqualifica, desestabilizando a relação da vítima com a organização e o ambiente de trabalho.

Qual a origem do assédio moral?
Essa prática que vem crescendo em todos os ambientes de trabalho no mundo é resultado da necessidade de pessoas ambiciosas e de má fé de se sobressaírem e se imporem às outras de forma perversa. Submetidos à pressão do dia-a-dia, em ambiente hostis, trabalhadores (as), sofrem calados e não reagem. Não percebem o mal que estão lhe fazendo, tanto para sua profissão quanto para a saúde e auto estima.

Como reconhecer o assédio moral –

Se seu superior frequentemente...
- questiona seus atestados médicos
- marca o número de vezes que você vai ao banheiro
- diz que você tem problemas psicológicos
- espalha fofocas a seu respeito
- zomba de suas características físicas
- passa tarefas humilhantes
- sobrecarrega você de novas tarefas
- isola você de outros colegas
- proíbe que seus colegas falem com você
- não lhe dirige a palavra e ignora sua presença, dirigindo-se apenas aos outros
- critica sua vida pessoal
- retira sua autonomia e seus instrumentos de trabal ho

Quem são as vítimas mais freqüentes no serviço público?
- as mulheres (principalmente as grávidas ou que têm filhos pequenos)
- os (as) portadores (as) de doenças relacioanadas ao trabalho (LER/DORT)
- vítimas de acidentes de trabalho
- negros (as)
- homossexuais
- portadores (as) de necessidades especiais
- trabalhadores (as) com mais de 40 anos
- pessoas que se sobressaem por sua postura crítica e que contestem regras injustas

O QUE FAZER?

DENUNCIE!
O isolamento e o silêncio são muito ruins para você e para seus colegas. Se perceber que está diante de uma situação de assédio moral, denuncie, reclame. Tem que colocar a “boca no mundo” para evitar que a sua saúde física e mental sejam prejudicadas.

Na primeira noite eles se aproximam

E roubam uma flor do nosso jardim

E não dizemos nada

Na segunda noite, já não se escondem

Pisam as flores, matam nosso chão,

E não dizemos nada.

Até que um dia, o mais frágil deles

Entra sozinho em nossa casa

Rouba-nos a luz, e,

Conhecendo nosso medo.

Arranca-nos a voz da garganta.

E já não podemos dizer nada.” (Maiakovski)

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

credores estrangeiros capitalizem o superávit econômico brasileiro e o transformem em serviços da dívida e outros pagamentos

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Como o Brasil pode manter seu superávit econômico defendendo-se da financeirização
Será que o Brasil realmente precisa recorrer a um crédito externo que poderia ser criado no próprio país para cobrir os gastos internos? O que interessa ao Brasil é salvar sua economia do sobreendividamento, principalmente de dívidas com credores externos. Sua meta deveria ser evitar a arquitetura financeira que hoje exige a deflação da dívida nas economias do Norte. O objetivo do Brasil deveria ser evitar que credores estrangeiros capitalizem o superávit econômico brasileiro e o transformem em serviços da dívida e outros pagamentos, ou seja, que façam do país uma “economia de pedágio”. O artigo é de Michael Hudson.
Michael Hudson (*)
Texto apresentado por Michael Hudson para o debate no Seminário Internacional sobre Governança Global, promovido pelo CDES (Brasília, 16 de setembro).

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As economias da América do Norte e da Europa estão se tornando mais endividadas à medida que a criação de crédito e débito pelos bancos, nos teclados de seus computadores, torna-se uma operação praticamente sem custos (0,25%). Especuladores, árbitros e instituições financeiras do Norte observam as economias menos endividadas do Brasil e de outros países do BRIC, nos quais rendas provenientes de recursos, rendas fundiárias e o fluxo de caixa industrial ainda não estão comprometidos com o pagamento do serviço da dívida.

Mas será que o Brasil realmente precisa recorrer a um crédito externo que poderia ser criado no próprio país para cobrir os gastos internos? O que interessa ao Brasil é salvar sua economia do sobreendividamento, principalmente de dívidas com credores externos. Sua meta deveria ser evitar a arquitetura financeira que hoje exige a deflação da dívida nas economias do Norte.

O Brasil e seus companheiros do BRIC enfrentam o dilema oposto: seus bancos centrais têm pouca opção a não ser inverter a direção e investir seus fluxos de capital em títulos do Tesouro americano. Esses títulos praticamente não rendem juros, e é provável que seu valor decline em relação às moedas do BRIC. Os títulos europeus também correm o risco de perder valor internacional.

Minha conclusão é que o modo antigo de integração internacional é um resquício de antigas promessas feitas no pós-guerra. Tornou-se abusivo, em vez de apoiar o investimento de capital, a infraestrutura pública e a melhoria da qualidade de vida. A era da “livre circulação de capitais” e da criação de crédito e de reservas internacionais pelos bancos centrais está terminando, dando lugar a uma situação de “almoço grátis” para grandes emitentes de moedas.

Eu gostaria de situar o tópico deste seminário, “Governança Global”, no contexto do controle global, pois nisso consiste a governança hoje em dia, basicamente. A palavra “governança” vem do grego kyber, que significa “pilotar.” A questão é: em que direção está navegando a economia mundial? Qual a meta?

Isso depende de quem tenha o leme nas mãos. Quase sempre, têm sido as economias mais poderosas as que pilotam o mundo ao longo de rotas que facilitam a transferência de renda e propriedade para elas mesmas. Essas transferências ocorreram desde o Império Romano e durante toda a história da Europa moderna, principalmente sob a forma de conquistas militares e tributos. Os conquistadores normandos transformaram-se numa aristocracia agrária hereditária que extraía pagamentos pelo uso da terra, da mesma forma como fizeram os conquistadores nórdicos da França e de outros países. Mais tarde, a Europa usou a colonização para se apropriar dos recursos do Novo Mundo, da África e da Ásia.

Hoje em dia, a manipulação financeira desempenha o mesmo papel que a conquista militar no passado. Seu objetivo ainda é controlar a terra, a infraestrutura básica e o excedente econômico – e também ganhar o controle das poupanças nacionais, utilizando, para isso, os bancos comerciais e as políticas dos bancos centrais. Essa conquista financeira é alcançada pacificamente (e até voluntariamente, da parte dos conquistados), ao invés de por meios militares, mas o efeito é semelhante. Economias endividadas são como países derrotados. Seus excedentes são transferidos para o exterior por vias financeiras. Os países devedores perdem a soberania sobre sua política econômica, financeira e fiscal e são obrigados, em última instância, a vender a infraestrutura pública para investidores estrangeiros - que transformam as tarifas moderadas até então cobradas do público em taxas de “pedágio” extrativas (“renda econômica”).

Há uma grande exceção à dinâmica do controle por credores: os Estados Unidos são a maior economia devedora, embora mobilizem seu poder de credor para privatizar os setores públicos de outros devedores evocando o Consenso de Washington.

O resultado é um padrão duplo nas finanças internacionais. Os Estados Unidos são o único país do mundo que não tem limites para a emissão de sua própria moeda (dívida do Tesouro) e de créditos bancários internacionais - pelos quais pagam uma taxa de juros muito menor que a de qualquer outro país – e que não dispõe de meios para pagar sua dívida num futuro previsível.

Esse padrão duplo transformou a natureza do dinheiro no mundo, o balanço de pagamentos e o significado de “ingressos de capital.” Se os créditos em dólares (ou em ienes) podem ser criados “livremente” sem qualquer restrição - diferentemente do que ocorria durante a vigência do padrão ouro, quando saídas de ouro forçavam os países a aumentar as taxas de juros nacionais –, então qualquer economia pode criar seu próprio crédito nos teclados de seus próprios computadores. Com isso, as entradas de capital não mais significam a provisão de recursos. Seu objetivo e seu efeito são simplesmente extrair juros e pedágio econômico (rent).

Esta é a lição mais importante para o Brasil. A natureza do próprio dinheiro sofreu uma transformação. Já não é mais um ativo sob a forma de barras de ouro ou de prata criado pelo trabalho. É dívida.

O dinheiro internacional – as reservas dos bancos centrais – transforma-se, sobretudo, em dívida do Tesouro americano, enquanto o dinheiro dos bancos assume a forma de dívidas privadas – dívidas de hipotecas, dívidas empresariais (progressivamente utilizadas para alavancar a tomada de controles acionários) e até mesmo empréstimos destinados a financiar derivativos especulativos e apostas no mercado de câmbio.

O privilégio do sistema bancário internacional de criar crédito com alguns cliques no teclado de um computador, sem limites fixados por um balanço de pagamentos ou por algum instrumento regulatório público, é uma forma de rent seeking. Isso levanta uma questão de política: deve-se deixar em mãos privadas esse privilégio de criar um “almoço grátis” que rende juros, ou deve-se tratá-lo como um monopólio público?

Os economistas clássicos recomendavam enfaticamente que os ativos geradores de rendimentos (rent) fossem mantidos no domínio público, onde suas remunerações constituiriam a fonte natural da receita pública e possibilitariam a prestação de serviços públicos básicos para as populações a preços mínimos. Em vez disso, cresceu tremendamente a privatização dessas fontes de “pedágios” econômicos – receitas que não têm um custo de produção correspondente.

Tudo isso resultou, em grande parte, da decisão tomada pelos Estados Unidos em 1971 de romper o vínculo entre o dólar e o ouro. A troca do padrão ouro pelo padrão das letras do Tesouro americano deixou os bancos centrais de outros países sem nenhuma alternativa de acumulação de reservas que não fossem os empréstimos feitos ao Tesouro dos Estados Unidos. Essa mudança permitiu que os Estados Unidos transferissem a outros países a tarefa de financiar os déficits do balanço de pagamentos americano.

Isso também garantiu uma “carona” militar permanente desde 1951, quando a Guerra da Coreia forçou o dólar a uma posição deficitária. Durante as décadas de 1950 e 60, os gastos militares dos Estados Unidos no exterior alcançaram o equivalente ao total do déficit do balanço de pagamentos do país. O setor privado esteve praticamente equilibrado durante essas décadas – enquanto a “ajuda” internacional norte-americana gerava, de fato, um superávit no balanço de pagamentos, já que as “ajudas externas” eram condicionadas à compra de bens e serviços americanos.

Enquanto outros países com déficits comerciais e do balanço de pagamentos são forçados a aumentar as taxas de juros para estabilizar suas moedas, os Estados Unidos baixaram suas taxas. Isso aumentou a “taxa de capitalização” de suas rendas fundiárias e dos lucros empresariais, permitindo que os bancos aumentassem os empréstimos utilizando garantias supervalorizadas.

As propriedades valem o que quer que os bancos se disponham a emprestar aos que querem comprá-las, e por isso os Estados Unidos têm conseguido utilizar uma “carona” propiciada pelo padrão-dólar para sobrecarregar sua economia com um excesso de endividamento sem precedentes – um excesso que tradicionalmente só penalizava países envolvidos em guerras no exterior ou sobrecarregados com pagamentos de reparações de guerra. Esse é o “efeito bumerangue” autodestrutivo, não previsto, do padrão letras-do-tesouro.

Esta é uma lição prática para o Brasil aprender. Hoje, vocês estão sendo beneficiados por uma bonança em seu balanço de pagamentos porque investidores e bancos estrangeiros estão criando crédito para emprestar ao Brasil e tomando como garantia os bens imobiliários, os recursos naturais e a indústria do país. O objetivo desses bancos é capturar o superávit econômico brasileiro sob a forma de pagamentos de juros e remessas de lucros ao exterior.

Mas por que o Brasil desejaria (ou requereria) essas “entradas de capital” que extraem juros, rendas (rents) e lucros simplesmente como um retorno de “créditos criados nos teclados de computadores”? Por que o Brasil não poderia ele mesmo gerar esses recursos internamente? No mundo de hoje, nenhum país necessita de crédito vindo do exterior para cobrir gastos internos em sua própria moeda. O objetivo do Brasil deveria ser evitar que credores estrangeiros capitalizem o superávit econômico brasileiro e o transformem em serviços da dívida e outros pagamentos, ou seja, que façam do país uma “economia de pedágio”, ou rentier.

A melhor maneira de evitar esse destino vem sendo descrita desde o tempo dos fisiocratas franceses e Adam Smith, passando por John Stuart Mill e os reformadores da Era Progressista, dos Estados Unidos à Europa: dar um fim aos privilégios especiais herdados das conquistas militares medievais europeias (privatização das rendas fundiárias) e coletar renda rentier como base fiscal, evitando que seja privatizada e capitalizada como empréstimos bancários. Esta política utilizaria impostos sobre recursos e renda (rent) para evitar a taxação do trabalho e da indústria. Isso baixaria o custo de vida e o custo de fazer negócios, removendo a carga fiscal e impedindo o aumento dos preços de moradias e bens imóveis. E essa é a maneira mais eficaz de tornar mais competitivas as economias no mundo de hoje.

O sistema americano de economia política no século 19 era baseado na percepção de que trabalho muito bem remunerado é trabalho mais produtivo. A chave para a competitividade internacional é, portanto, aumentar os salários e os padrões de vida, em vez de reduzi-los. Isso é especialmente verdadeiro no caso do Brasil, dada sua necessidade de melhorar as condições de sua população por meio de melhores sistemas de educação, saúde e apoio social. Se for para elevar o investimento em capital tangível e a qualidade de vida, o país precisa taxar o "almoço grátis" sob forma de renda proveniente da terra (land rent), renda proveniente de recursos e renda de monopólios, bem como os inúmeros encargos financeiros rentier que transformam o excedente em um overhead economicamente desnecessário. O Brasil precisa usar seu excedente para investir em formação de capital e infraestrutura pública.

Em contraste com essa recomendação de política, a característica marcante do nosso tempo é a financialização – a capitalização do excedente econômico (fluxo de caixa das empresas, renda proveniente de imóveis, e renda pessoal num nível muito acima do custo de vida básico) em pagamentos de juros sobre empréstimos bancários. A riqueza das nações é calculada da perspectiva dos banqueiros, ou seja, como o fluxo de renda que pode ser capitalizado nesses empréstimos. Na prática, isso significa transformar o excedente de renda em serviço da dívida.

Isso está muito longe do que Adam Smith escreveu em A Riqueza das Nações. Mas é esse, de fato, o plano do departamento de marketing dos bancos para suas operações internacionais. O “modo de olhar dos banqueiros” vê qualquer fluxo de capital como potencialmente disponível para ser usado no pagamento de juros. Para eles, idealmente, todo o superávit pode ser transformado em serviço da dívida. Renda líquida de propriedades imobiliárias, fluxo de caixa de empresas [ebitda - ganhos antes de juros, impostos, depreciação e amortização], renda pessoal acima de gastos básicos, e receitas líquidas de impostos, tudo isso pode ser capitalizado, e o limite é definido pelos montantes que os bancos queiram emprestar. Menores taxas de juros, menores valores exigidos como sinal, prazos mais longos de amortização e até mesmo empréstimos fraudulentos e imprudentes aumentam, assim, a “taxa de capitalização” dessas receitas. Isso é aplaudido como “criação de riqueza” financeira - mas é, de fato, uma inflação do preço dos ativos alavancada por dívidas e que deixa um resíduo de dívida, em vez de formação de capital tangível em outros meios de produção.

O limite dessa política é atingido quando todo o superávit – o total da renda extraída dos imóveis, o fluxo de caixa das empresas e a capacidade de gastos públicos (e, desde 2008-09, a capacidade do governo de monetizar socorros financeiros) - se transforma num fluxo de serviços da dívida. A essa altura, a economia já estará totalmente “financializada.” Não sobra nenhuma receita para nada, e a economia terá de encolher.

O FMI e o Banco Mundial não são reformáveis
O documento fala de “reformar” o FMI, o Banco Mundial e até mesmo as Nações Unidas. Não acredito que esta seja uma esperança realista. Como analisei em Super-Imperialismo (1972), o Banco Mundial e o FMI estão comprometidos com uma filosofia econômica destrutiva.

Tomemos o caso do desenvolvimento agrícola. O Banco Mundial só tem autorização para conceder empréstimos em moeda estrangeira se forem destinados a aumentar as exportações. Em conformidade com isso, seus empréstimos têm ido para estradas e infraestrutura de exportação, não para desenvolver as economias dos países. O resultado foi uma mudança nos padrões agrícolas do Terceiro Mundo, levando os países a deixar de lado a produção de grãos para alimentar suas populações e, em vez disso, privilegiar grandes empreendimentos agrícolas exportadores.

Com isso, a excessiva oferta de produtos agrícolas por esses países nos mercados mundiais deteriorou os termos de troca do Terceiro Mundo, permitindo, simultaneamente, que os Estados Unidos e a Europa se tornassem importantes exportadores de grãos. Assim, os países do Norte beneficiam-se do aumento dos preços de seus grãos e reduzem os preços de suas importações, na medida em que pressões políticas nos Estados Unidos opõem-se à reforma agrária nos países do Terceiro Mundo, preferindo fortalecer a grande agricultura exportadora (que é propriedade de estrangeiros).

Esse padrão de comércio beneficia os centros industriais e agrícolas, ao mesmo tempo em que leva a periferia importadora de alimentos à dependência de alimentos e de empréstimos – uma situação definida por um simpático eufemismo burocrático: “interdependência”.

O resultante dreno de recursos para pagar credores e proprietários absenteístas obriga os países periféricos a serem devedores. Isso permite que as nações credoras os forcem a “equilibrar seus orçamentos” e a liquidar seus patrimônios públicos. Os novos compradores extraem renda econômica cobrando pelo uso de patrimônios até então públicos – agora que os empréstimos iniciais para financiar esses projetos já foram pagos. Para piorar ainda mais a situação, a compra desses ativos com créditos (propiciados por bancos estrangeiros) permite que os investidores dos Estados Unidos e da Europa “debitem” sua receita sob a forma de juros que podem ser deduzidos. Assim, esses juros, bem como a renda econômica, são transferidos para o exterior sem pagar impostos.

A reforma fiscal e a financeira devem caminhar juntas para criar uma economia mais “realista” e estável

O documento preparado para esta conferência fala do crescimento da população do Terceiro Mundo como afetando a “importância relativa dos países desenvolvidos.” No passado, a população certamente constituía uma vantagem militar, além de fornecer mão de obra para a produção. Mas hoje são as finanças que detêm o controle e a dominação, não os exércitos.
As nações líderes estão dispostas a ver crescerem o Brasil e outros países do BRIC, desde que seus interesses rentier possam capturar o superávit econômico (sob a forma de serviço da dívida – juros, amortizações e taxas) e as rendas monopolistas (sob a forma de “direitos de pedágio” sobre estradas e outras obras de infraestrutura sendo privatizadas). Elas buscam fazer com que essas capturas sejam “livres” de taxação, demandando a isenção de impostos sobre juros e outras taxas tecnicamente desnecessárias (como a de depreciação, por exemplo) e também a aceitação de “taxas de administração” arbitrárias e de preços de transferência artificialmente baixos, no caso de exportações. Depois de usados todos esses estratagemas, sobra pouca renda líquida para ser declarada e taxada.

Para manter o monopólio de criação de créditos em mãos privadas, as nações credoras demandam que os governos não usem seus bancos centrais para fazer o que os bancos centrais em todo o mundo foram originalmente criados para fazer: financiar os déficits públicos e a base nacional de crédito. O pretexto é que o financiamento dos déficits orçamentários públicos pelos bancos centrais é uma prática inflacionária. Mas não é mais inflacionário do que permitir que os bancos centrais criem crédito com seus próprios computadores!

O Banco Central europeu se impôs uma política financeira autodestrutiva ao insistir em que os governos tomem empréstimos somente em bancos comerciais e em outros financiadores privados. Para piorar ainda mais a situação, as filiais de bancos estrangeiros devem receber o privilégio de criar crédito em moeda nacional para que possam criar seu próprio crédito bancário eletrônico e receber o serviço da dívida interna.

A demanda paralela por “orçamentos equilibrados” é um eufemismo para liquidar o patrimônio público, cortar as aposentadorias dos trabalhadores e os gastos públicos com educação, saúde e outras pré-condições básicas para o aumento da produtividade do trabalho. Felizmente, essa política deflacionária não pode ser bem sucedida se os outros países tomarem providências para se salvar. O planejamento da austeridade exige o oposto das políticas keynesianas seguidas pelos Estados Unidos e por outras nações líderes.

Uma política fiscal que favoreça a alavancagem de dívidas, ao invés de investimentos de capital, destrói tanto o centro quanto a periferia. A Europa e os Estados Unidos estão permitindo que a dinâmica financeira (“a mágica dos juros compostos”) encolha suas próprias economias! Se continuar a atual tendência de dívida-deflação, as principais nações credoras acabarão por sujeitar-se à escravidão por dívida. É para evitar isso que o movimento trabalhista europeu está planejando para 28 de setembro de 2010 uma greve geral contra os planos de austeridade destinados a rebaixar a níveis anteriores os padrões de vida conquistados.

Essas tendências financeiras levantam a questão de se a “interdependência” – uma palavra que aparece na primeira sentença da brochura desta reunião – implica concordância com o estilo neoliberal de globalização. Existe uma tendência a ver isso como desejável em si mesmo, como se fosse um acordo amigável e em benefício mútuo. Mas, no mundo de hoje, isso implica dependência: dependência alimentar, dependência militar e dependência sob a forma de endividamento. O Consenso de Washington sendo promovido pelo Fundo Monetário Internacional, pelo Banco Mundial e pela ajuda bilateral norte-americana tem como objetivo reforçar esses três modos de dependência. O resultado não é um movimento em direção ao globalismo multilateral benéfico para todos, mas sim um sistema extrativo que reforça a hegemonia financeira e militar norte-americana.

A importância da ideologia econômica para promover um recomeço
Em vista do que foi dito acima, eu acredito que hoje seja necessário um rompimento com o passado financeiro, mais do que apenas uma “revisão da governança global.” A revisão de estruturas existentes tende a ser meramente marginal, e não estrutural – e o que se requer é uma mudança de estrutura.

Construir novas bases substituindo velhas instituições e começando novamente é mais fácil do que tentar modificar instituições ruins e quadros de pessoal comprometidos com políticas do passado. Foi esse o caminho seguido pelos Estados Unidos depois da Guerra da Secessão. Os republicanos que então chegaram ao poder buscaram promover uma alternativa à doutrina britânica de livre comércio que era ensinada nas faculdades de maior prestígio, como Harvard, Yale e Princeton, doutrina que se opunha a tarifas protecionistas, a um banco nacional e ao investimento público em infraestrutura. A fim de prover uma lógica econômica para seu novo programa, os republicanos fundaram novas faculdades (construídas em terras doadas pelo governo) e escolas de administração de negócios nas quais era ensinada a doutrina que iria levar os Estados Unidos à liderança mundial, baseada no protecionismo e na tecnologia.

Atualmente, o fator mais importante da força econômica do Brasil e de outros países “novos” é que vocês ainda não estão tão oprimidos por dívidas, como é o caso da América do Norte e da Europa. É verdade que suas vantagens incluem o tamanho da população e os recursos naturais. Mas vocês sempre tiveram isso. O Brasil e seus companheiros do BRIC são a parte mais importante da economia global que ainda não se curvou financeiramente ao peso do serviço da dívida. Os banqueiros, portanto, observam vocês como países que ainda não estão “endividados até o pescoço.” Vocês têm um superávit econômico disponível, ainda não comprometido com o serviço da dívida.

O maior problema econômico desses países “novos” é descobrir a forma de não sucumbir aos compromissos da dívida - que se transformaram em obstáculo ao crescimento do Norte. A solução precisa ser encontrada numa alternativa à ideologia fiscal e financeira neoliberal promovida por instituições internacionais; não basta uma mera revisão.

Os quatro objetivos citados para debate aqui
Sob o eufemismo de “orçamentos equilibrados,” a austeridade que hoje se exige dos países do Terceiro Mundo tem como objetivo evitar que seus superávits econômicos sejam utilizados para aumentar salários e melhorar os padrões de vida. No que se refere ao ponto 1 - globalização e mercados de trabalho -, essa política é autodestrutiva. Ela impede o aumento da produtividade e ameaça sufocar os mercados domésticos ao transferir o superávit para os setores financeiro, de seguros e imobiliário (FIRE, nas iniciais em inglês) sob a forma de serviço da dívida e extração de pedágio para remunerar rentiers.

No que se refere ao ponto 2 - novos indicadores de desenvolvimento -, esses são de fato necessários para substituir os atuais, limitados à contabilização de componentes do PIB. O problema é que as categorias utilizadas em qualquer esquema de contabilidade, bem como a forma como são organizadas, derivam da teoria econômica – e isso precisa ser ajustado.

A doutrina clássica dividia as economias em duas partes: o setor de produção e consumo (“Economia 1”, que os livros didáticos chamam de “economia real”) e o setor extrativo ou “improdutivo”, que inclui finanças, seguros e imóveis (“Economia 2”). O maior defeito do modelo de contabilidade do PIB é considerar que esses três componentes do FIRE geram “produtos” de valor igual ao que os rentiers recebem (isto é, que extraem) da economia “produtiva”. O resultado é um formato de PIB pró-rentier, não uma descrição da realidade econômica – e, sem dúvida, não um guia para a ação governamental. Ao deixar de distinguir entre riqueza e custos indiretos, entre o produto e as reivindicações sobre o produto, esse sistema contábil nega a definição clássica de renda econômica como o valor que ultrapassa o preço de mercado e que excede o custo necessário de produção. A prestação de serviços privatizados a preços que ultrapassam os custos necessários de produção deveria justificadamente ser tratada como pagamento de transferência, e não como produto.

Os dois primeiros tópicos em discussão aqui – (1) uma política de austeridade e (2) um mapa estatístico da economia que representa o mundo tal como visto com olhos de banqueiros – reforçam o terceiro: (3) uma política de desenvolvimento insustentável. Dívidas que crescem a níveis exponenciais (“a mágica dos juros compostos”) não são sustentáveis porque a tentativa de pagá-las empobrece a população.

A essa altura, já deve estar clara a razão pela qual economias “financializadas” se tornaram menos competitivas. No mundo de hoje, o preço do trabalho é composto, em grande parte, por pagamentos ao setor FIRE, em vez de ser calculado para a compra de alimentos e bens de consumo como ocorria no século XIX, quando foi elaborada a teoria do comércio. Eu atribuo o déficit comercial americano ao fato de que os trabalhadores industriais tipicamente gastam até 40% de seus rendimentos com habitação (seja aluguel ou amortização de dívida hipotecária), 15% com outras dívidas (juros e taxas de cartões de crédito, financiamento de automóveis, empréstimos educacionais etc.), 11% com descontos em folha para financiar a seguridade social e o Medicare, e outros 15% com outros impostos (de renda e indiretos).

Isso nos leva ao tópico mais amplo (4) da governança global. Quem estabelecerá as regras? E no interesse de quem deverão ser estabelecidas? Ou, para falar em termos do conflito atual mais recente, “austeridade para quem?” Será que os pagamentos de dívidas imobiliárias e de outras dívidas serão ajustados à capacidade de pagamento dos devedores? Se forem, os bancos e os 10% mais ricos da população que mantêm no vermelho os restantes 90% terão de perder algumas das vantagens financeiras que lhes permitem reduzir a economia a um estado de servidão. Mas, se o valor nominal das dívidas não for reduzido, o resultado será a deflação da dívida.

Parece-me óbvio que a reforma financeira é necessária. E uma reforma financeira exige uma reforma fiscal, porque a parte que os cobradores de impostos deixarem de arrecadar ficará disponível (“livre”) para ser destinada ao pagamento de juros. Impostos mais baixos sobre rendas deixam mais receita disponível para ser emprestada a compradores e aumentar os preços do crédito.

Atualmente, os sistemas fiscais de quase todos os países favorecem o financiamento de dívidas ao permitir que juros e taxas financeiras sejam deduzíveis dos impostos, ao passo que dividendos e outras rendas devem ser pagos depois dos impostos. Isso vai contra a lógica de Saint-Simon e de outros reformadores do século XIX que buscavam libertar os mercados do endividamento excessivo, e não libertar banqueiros e financistas de regulamentações e impostos.

O mundo atual está pagando um alto preço por sua reação - patrocinada pelos rentiers - contra as economias clássicas. Essa reação desviou a atenção do fato de que as economias sofrem um aumento crescente do que J.S.Mill chamou de renda não merecida e incrementos não merecidos, que assumem a forma de maiores rendas fundiárias e elevação do preço da terra. “A extração de rendas” (rent) é o plano de negócio dos privatizadores da infraestrutura pública e de monopólios naturais – e de seus apoiadores financeiros que buscam fornecer empréstimos para aquisições acionárias. A tragédia de nossa época é que a maior parte do crédito é concedida para aproveitar oportunidades de extração de rendas e não para a formação de capital produtivo. Os bancos preferem emprestar tendo como garantia propriedades já existentes – imóveis ou empresas –, em vez de financiar a formação tangível de novos capitais. Isso cria a ameaça de a globalização assumir um caráter corrosivo, ao invés de tornar-se um sistema de ganhos mútuos.

O lema neoliberal de Margaret Thatcher - TINA, “There Is No Alternative” (“Não existe alternativa”) - ignora a alternativa defendida por duzentos anos de pensamento econômico clássico, desde Adam Smith e os Fisiocratas, passando por John Stuart Mill e até por Winston Churchill: basear o sistema de impostos na renda proveniente da terra (land rent) de modo a manter baixos os custos de moradia (e, em consequência, o custo de vida dos trabalhadores), ao invés de taxar o trabalho e, assim, aumentar o seu custo. A Era Progressista tinha como objetivo manter no domínio público os monopólios naturais como transporte, comunicação e até mesmo bancos, ao invés de permitir que proprietários privados os comprassem e coletassem rendas econômicas, deslocando o peso dos impostos para o trabalho, a indústria e a agricultura.

Felizmente, existe uma alternativa. A pobreza e o encolhimento da economia não são necessários. Entretanto, dada a “visão de mundo de banqueiros” sendo promovida pelo FMI, pelo Banco Mundial e pela maioria dos economistas mais importantes, sugiro que a tarefa de vocês seja livrar-se da globalização no atual formato “financializado”. Não permitam que estrangeiros comprem seus ativos com crédito “criado em computadores” dos quais vocês não precisam. Preparem-se para ser independentes e resistir a uma “coordenação global” que não marcha numa direção positiva.
O perigo que enfrentam as economias atuais é a crescente pressão para reduzir os padrões de vida, os investimentos de capital e os gastos com infraestrutura a fim de que os recursos sejam usados para pagar dívidas exponencialmente crescentes – tanto privadas como públicas. Algo tem de ser sacrificado. Ou as dívidas terão de ser perdoadas – ou pelo menos reduzidas e ajustadas à capacidade de pagamento – ou então as economias encolherão e sofrerão ondas de execuções hipotecárias e de polarização financeira entre credores e devedores.

O problema fiscal é parte integrante desse problema financeiro. Os déficits orçamentários atuais são resultantes de não se taxar terras e monopólios privatizados – e de se sobrecarregar o trabalho produtivo e a indústria com um imposto regressivo. A renda econômica que o coletor de impostos deixa de cobrar fica “liberada” para ser comprometida com os bancos - que estão sobrecarregando com dívidas as economias.

A questão mais importante desta reunião é: o que o Brasil deve fazer com seu excedente econômico? Investirá em meios de produção para elevar os padrões de vida da nação? Ou renunciará a ele, colocando-o à disposição dos interesses financeiros, tanto nacionais quanto internacionais, sob a forma de juros e extração de rendas?

O mundo de hoje enfrenta uma escolha entre a política econômica clássica e a do neoliberalismo. O que está em jogo é o conceito de mercados livres. Devem esses mercados livrar-se de monopólios e privilégios especiais, mantendo no domínio público a riqueza natural e as rendas do tipo “almoço grátis” (sem elevar os preços de imóveis e matérias-primas, e de monopólios naturais), liberando-as para investimentos que reduzem o custo de vida e o custo de fazer negócios? Esse era o objetivo da luta política dos reformadores políticos e econômicos clássicos nos séculos XVIII e XIX.
Os neoliberais advogam a política oposta. Eles definem “mercado livre” como um em que os rentiers têm liberdade para extrair rendas e juros; para privatizar o domínio público e transformá-lo numa “praça de pedágios”, cobrando pelo uso de estradas e de outras infraestruturas básicas; para sobrecarregar as “taxas de uso” com encargos financeiros economicamente desnecessários, salários exorbitantes e propinas pagas a apropriadores absenteístas e estrangeiros.

Assim, isso nos leva de volta à questão inicial: a privatização do domínio público com base no crédito (incorporando o sobreendividamento) e na financialização da economia é semelhante, em seus efeitos, a uma derrota militar. Para se defenderem, os países do BRIC devem isolar-se do processo global de criação de dívidas.

O “diálogo” advogado por esta conferência, relativo a regras para uma “nova governança global”, dificilmente conseguirá chegar a um consenso positivo num contexto em que os Estados Unidos e a União Europeia, o Banco Mundial e o FMI estão demandando austeridade para reverter os ganhos obtidos pelo trabalho desde a Segunda Guerra Mundial. O que eles demandam é um sacrifício da Seguridade Social do trabalho e dos fundos de pensão, numa vã tentativa de continuar com o debt overhang que se desenvolveu como consequência inevitável – mas antinatural – da ideologia fiscal e financeira da geração passada.

(*) Michael Hudson é ex-economista de Wall Street e atualmente um Pesquisador destacado na Universidade do Missouri, Kansas City (UMKC), e presidente do Instituto para o estudo das tendências de longo prazo da economia (Institute for the Study of Long-Term Economic Trends ISLET). É autor de vários livros, incluindo Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire (new ed., Pluto Press, 2002) [Super Imperialismo: A Estratégia Econômica do Império Ameicano] e Trade, Development and Foreign Debt: A History of Theories of Polarization v. Convergence in the World Economy. [Comércio, Desenvolvimento e Dívida Exerna: Uma História das Teorias da Polarização versus Convergência na Economia Mundia